Estamos finalizando a 9ª travessia com um texto importante para os tempos atuais.
Lívia Humaire, ativista socioambiental, geógrafa, metereologista e mestranda em Antropologia e Ruptura Climática, aceitou o convite para falar sobre o que podemos fazer em tempos caóticos, com crises sobrepostas, em que muitos (que escolhem não negar as crises sociais e climáticas) se apresentam exaustos.
O texto saiu no domingo passado, exclusivamente para os assinantes da Comunidade Travessias. Como são reflexões e direcionamentos importantes, nesta segunda, estamos abrindo para todos que acompanham a Travessias Revista Digital.
Agora, com a palavra… Lívia Humaire! ;)
Recebi um convite para escrever esta coluna em Travessias, revista da Bambual Editora, à qual eu lancei meu livro e que trata de temas e assuntos tão importantes, dos quais compartilho visão de mundo e apreço. Definitivamente, eu não queria me concentrar nos recordes históricos de temperaturas planetárias que estamos batendo desde maio deste ano. Recordes estes impulsionados pelo El Niño, já previsivelmente forte, que se configura agora no oceano Pacífico, o que vem provocando mais chuvas e ciclones tropicais (aumento da temperatura do oceano) no sul do Brasil e também a seca e as faltas de chuvas na região Norte e Nordeste do país, com todas as trágicas consequências para a Amazônia, seus povos e a natureza. E tudo isso estamos acompanhando, em tempo real, das telas dos nossos dispositivos móveis.
O que estamos vivendo hoje, em tempo real, foi bastante anunciado, pelo menos nos últimos 50 anos, mas as pessoas que ergueram suas vozes e travaram lutas contra o desastre anunciado, e calculado pelos modelos climáticos matemáticos, foram taxados de alarmistas e ecochatos. Eu sou uma dessas pessoas. Trabalho e vivo as questões ambientais desde 2006, mas sempre fui uma ecochata de estimação de muitos amigos e familiares.
E então chegamos ao ponto que eu tanto temia, aquele momento em que olhamos ao redor e pensamos, por mais avisadas e avisados que estivéssemos, e agora?
Tenho duas questões importantes para abordar aqui a esse respeito:-
Ações individuais são extremamente importantes para construir caminhos alternativos e ideias alternativas para a sociedade. Isso é um fato! Elas preparam indivíduos para processos mais complexos e podem contribuir com lutas coletivas se dermos passos para além da esfera “faça a sua parte”.
Ações individuais são insuficientes para alterar qualquer questão estrutural, e a crise climática nada mais é do que o resultado de problemas socioambientais persistentes, portanto, estruturais.
E aí é que mora o pulo do gato, para superarmos problemas socioambientais persistentes precisamos de mudanças profundas, as tais mudanças estruturais. E como podemos fazer isso?
Todos os dias eu recebo perguntas e desabafos nas minhas redes sociais sobre essa dissonância cognitiva expressa da seguinte forma: Mas se fazer a minha parte não adianta, o que devo fazer?
E assim chegamos ao cerne do que eu realmente gostaria de abordar nesta coluna: O que nós podemos, devemos e queremos fazer diante da sobreposição de crises que estamos vivendo agora?
Aviso aos caminhantes da Travessia, dá trabalho, viu?!
Não existe como fazermos qualquer movimento na direção oposta do mundo que não seja um movimento contra a maré. E quem está tentando se movimentar, vive o tempo da exaustão, outro fato! Mas, no processo do trajeto, encontramos pessoas e grupos que nos trazem fôlego e também com as quais podemos revezar, porque já dizia a velha frase: quando estiver cansada, descanse. E não desista!
1. CSA - a conexão mais importante da atualidade para quem está na cidade.
CSA representa a sigla para Comunidade que Sustenta Agricultura, e representa um movimento global de extrema importância que está conectando pessoas diretamente ao mundo da agricultura sustentável, e certamente você pode encontrar uma próxima a você. Mas por que isso é tão crucial para o momento que estamos vivendo agora?
Quando você se torna parte de uma CSA, você está contribuindo de maneira consistente para o apoio de comunidades de agricultores comprometidos com a sustentabilidade. Você paga uma taxa mensal e, em troca, recebe produtos frescos e saudáveis diretamente desses agricultores. Além disso, ao se envolver com uma CSA, você elimina intermediários nessa transação, garantindo que uma porção desse investimento vá diretamente para os agricultores em um tempo onde veremos cada vez mais quebras de safras e problemas relacionados com as mudanças climáticas.
Estabelecer e manter essa conexão pode assegurar a sustentabilidade contínua da produção ao mesmo tempo em que garante seu acesso a alimentos saudáveis. Algumas CSAs oferecem a oportunidade de participar de dias de produção abertos aos membros. Isso permite que você se envolva ativamente e aprenda com as práticas agrícolas no campo, fortalecendo sua própria habilidade de produzir comida e promovendo a sobrevivência comunitária.
2. Se articule em um movimento do seu bairro - movimentos urbanos são potentes
Seguindo a mesma lógica da resiliência comunitária que também falei acima, juntar força a um movimento que acontece no seu bairro é fundamental em tempos de crise, porque é na construção da solidariedade e comunitários que vamos construir nossa própria resiliência. Afinal o capitalismo age diretamente no esgarçamento do tecido social, destruindo nossa coesão, então sim, este também é um fazer ou ato anticapitalista.
No ano passado, durante uma palestra que ministrei para o SESC sobre transições ecológicas, tive a oportunidade de conhecer uma iniciativa incrível no bairro da Vila Mariana, em São Paulo (existe amor em SP e muito composto também, imagina o que não dá pra fazer com isso?). Esta iniciativa, além de ser altamente engajada, tem um impacto notável em níveis comunitários e ambientais. Atualmente, ela direciona mais de 300kg de resíduos orgânicos para a compostagem por semana, em vez de enviá-los para os aterros sanitários. Além disso, esse projeto reúne a comunidade, promovendo um senso de unidade e tornando o bairro um lugar ainda melhor para se viver.
"Mas Lívia, não tem uma iniciativa assim aqui onde moro”.
Tá aí uma boa oportunidade para criar algo incrível. Você não precisa começar do zero. Aqui no site dos ecobairros você pode encontrar muita solidariedade e apoio para começar algo por aí. Esse movimento é só um exemplo. Existem infinitas outras iniciativas de bairro que você pode encontrar perto de você.
3. Quem são as empreendedoras e empreendedores pequenos perto de você?
Aqui é um ponto delicado porque facilmente pode ser associado a uma dimensão de consumo. E de fato é uma dimensão de consumo. Mas, vou tentar explicar como isso vai muito além.
Apenas 10 empresas controlam todo o mercado mundial (figura 3) de tudo que você ou qualquer família no mundo consome, desde alimentos, produtos de limpeza, produtos para pets e claro, cosméticos. Basicamente todo o dinheiro que usamos para consumir produtos do nosso dia a dia vai para essas 10 companhias, concentrando renda entre elas, certo?
Uma marca pequena é facilmente engolida por estas donas do mercado. Lembram do caso da marca Mãe Terra que foi fagocitada pela Unilever? Esse é só um dos exemplos. Dá pra entender porque é tão difícil pra uma marca pequena concorrer com esse império?
Vamos aos fatos. No Brasil, a transição e mudança em torno dos cosméticos sólidos foram impulsionadas principalmente por pequenas produtoras. Ao longo dos últimos 15 anos, especialmente durante a popularização do movimento de cosmetologia natural no país, essas empreendedoras criaram fórmulas incríveis e produtos de cosméticos sólidos com ingredientes igualmente incríveis. Muitas vezes, essas iniciativas também deram origem a novas cadeias produtivas, como no caso da marca Prema, que desenvolveu isso junto às cooperativas de mulheres da Amazônia. No entanto, muitas dessas marcas pioneiras e pequenos produtores enfrentam desafios significativos nos últimos 15 anos. Muitas foram fechadas, e várias estão passando por dificuldades financeiras para se manterem no mercado.
Marcas que não conseguiram se registrar na Anvisa (devido a um processo burocrático que favorece as grandes empresas) ou as que conseguiram o registro, mas agora enfrentam mercados muito mais competitivos, uma vez que todas as grandes marcas lançaram suas linhas de cosméticos sólidos ‘do bem’. Vale ressaltar que, embora tenham lançado essas linhas, os processos produtivos e os ingredientes continuam contribuindo para manter a máquina capitalista girando. Ou seja, lançaram produtos com roupagem nova, mas os ingredientes e os processos produtivos seguem problemáticos, poluindo nosso corpo e o ambiente.
Tudo isso para dizer que, se você tiver capacidade financeira, é importante apoiar essas pequenas iniciativas e empresas, pois isso beneficiará mães e famílias inteiras, em vez de sustentar a oligarquia das 10 empresas que poluem, exploram e concentram renda, em vez de transformar qualquer coisa.
3. Partido político e instituições políticas é para você?
Sem dúvida, é essencial abordar essa dimensão vital para as transformações sociais que buscamos. Enquanto outras formas de ação têm impacto direto nas comunidades, a ocupação dos espaços políticos institucionais é igualmente crucial. Muitas vezes, somos condicionados a ter aversão à política, mas devemos nos perguntar se isso é intencional. Começar por essa reflexão nos desafia a encarar esse problema de frente.
Espero que essa coluna tenha contribuído com a questão de entendermos que é essencial examinar atentamente nosso cotidiano e compreender o que estamos apoiando diariamente. Os pontos que mencionei são apenas um ponto de partida, mas como Nêgo Bispo, uma líder quilombola, destaca de forma perspicaz, eles não nos levarão a um novo começo por si só.
Para alcançarmos outros começos viáveis, devemos construir solidariedade em nossos próprios ambientes e comunidades. Precisamos ser coletivos, unindo-nos em grupos que, com uma abordagem crítica, podem contribuir para as transformações profundas que são urgentemente necessárias.
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