Como os povos indígenas veem o cuidado com a saúde mental?
#TeIndicoUmLivro- O mundo em mim: Uma Teoria Indígena E Os Cuidados Sobre O Corpo No Alto Rio Negro
Comecei esse livro na expectativa de encontrar respostas para a pergunta que eu tinha:
Como os povos indígenas veem o cuidado com a saúde mental?
Tenho investigado muito sobre os efeitos do racismo na subjetividade de pessoas negras, mas pouco sobre visões de mundo alternativas ao nosso modelo de saúde.
Pensando que essa visão circunscrita da saúde mental seria um termo limitador para quem pensa o mundo a partir de uma cosmovisão ampla sobre cuidado, não só me envolvi loucamente na leitura através da imersão que autor proporciona, como me deparei com a sistematização de uma teoria sobre a medicina indigena dos grupos Yepamahsu (Tukano), Utãpirõmahsu (Tuyuka) e Umukorimahasu (Desana) do Alto Rio Negro, localizado no Amazonas.
E para começar essa conversa, acho fundamental nos localizarmos geograficamente e saber que a Terra Indigena Alto Rio Negro é uma área habitada por 23 etnias, a saber: Arapaso, Baniwa, Bará, Barasana, Baré, Desana, Hupda, Isolados do Igarapé Waranaçu, Isolados do Rio Cuririari, Isolados do Rio Uaupés, Karapanã, Koripako, Kotiria, Kubeo, Makuna, Mirity-tapuya, Pira-tapuya, Siriano, Tariana, Tukano, Tuyuka, Warekena e Yuhupde.
A teoria sobre a vida para os povos indígenas do Alto Rio Negro, em especial do grupo Tukano, que em sua língua se auto-intitulam Yepamahsã, vai muito além da nossa compreensão sobre o corpo. Uma vez que somos constituídos por partículas metaquimicas e elementos do cosmo, somos também afetados pelas mudanças e interferências que ocorrem nesse espaço.
Um dos princípios dessa teoria é de que o corpo é uma potência e pode ser transformado em qualquer coisa. Esse corpo:
carrega um nome que o qualifica enquanto humano, e o processo de nominação se dá pelo Heriporã bahseke wame, importante ritual pós nascimento que te faz pertencer ao grupo/unidade social territorial;
está conectado ao cosmo meta quimicamente através das narrativas míticas (Kihti Ukuse) e fisicamente por meio dos elementos-vida que constituem o mundo: a água, o ar, a luz, o vegetal, o animal e o mineral. boreyuse kahtiro (luz/vida), yuku kahtiro (floresta/vida), dita kahtiro (terra/vida), ahko kahtiro (água/ vida), waikurä kahtiro (animal/vida), ome kahtiro (ar/vida) e mahsa kahtiro (humano/vida);
está inserido em uma rede de relações e também possui uma função social que está intimamente interligado ao seu nome;
e sobretudo, esse corpo está em constante estado de devir.
O corpo não é apenas um agrupamento de elementos e portador de padrões concretos de costumes e hábitos, mas um conjunto de kahtise (vidas) extragenéticos; um corpo que se transforma, encerra um ciclo de kahtiro (vida) e começa outro ciclo de kahtiro. O corpo, então, é a arena de expressão de uma filosofia ameríndia, e esses exemplos mostram um aspecto importante dessa filosofia indígena do Alto Rio Negro, para a qual um corpo é uma agência dinâmica e não algo acabado, encerrado em si, individualizado e biológico.
Que estamos em constante transformação, a gente até escuta falar, mas daí a aceitar que isso é algo orgânico e que poderíamos ser preparados a fluir com essas mudanças é algo pouco dialogado. A universalização das nossas existências nos conduz a perceber o mundo de forma rígida, pouco flexível.
E a nossa perspectiva de mundo tende a reduzir e unificar as nossas experiências a fim de fazer leituras reducionistas, encontrar padrões, universalizar comportamentos, comparar ao invés de complementar, dentre tantas outras questões que se abrem quando estamos falando de uma sociedade que está preocupada em tamponar o sofrimento e perpetuar ciclos de adoecimento.
O mundo em mim: Uma Teoria Indígena E Os Cuidados Sobre O Corpo No Alto Rio Negro, de João Paulo Lima Barreto, primeiro indígena a receber o título de doutor em antropologia pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e Coordenador do Centro de Medicina Indígena Bahserikowi, faz um esforço enorme de nos inserir na cosmovisão indígena a partir da redefinição de nomenclaturas, nos despindo dos conceitos estereotipados, muitas das vezes atribuídos a partir do ponto de vista religioso.
Existe uma atenção especial dos Yepamahsã a cada ciclo de vida de uma pessoa, que envolve nascimento, primeira menstruação, gravidez, parto. Os especialistas indígenas, conhecidos como Yai, Kumu ou Baya entendem que o corpo precisa ser preparado e protegido para que as transformações aconteçam de forma segura. A eles cabe a função de atuar no diagnóstico, prevenção, proteção ou tratamento de doenças através das fórmulas terapêuticas de Bahsese.
O conceito sobre o corpo está ancorado nos kihti ukuse e nas fórmulas de bahsese. E os três pilares do sistema preventivo: o cuidado com as relações interpessoais (com waimahsã e entre pessoas), a mitigação de intempéries naturais e a prevenção da contaminação dos alimentos. Isso inclui bahsese de assepsia de alimento para a primeira alimentação da criança, bahsese para o parto sem complicações, bahsese de útero para uma boa gravidez, bahsese para uma criança saudável, bahsese contra inveja e maus desejos, bahsese para realizar boas viagens, bahsese para afastar o fantasma do morto e proteção da pessoa, proteção da família, proteção da casa, proteção da comunidade, proteção da criança.
Certa vez ouvi em algum podcast - não me recordo o nome agora - que nós somos os mais vulneráveis dentre os mamíferos e essa condição nos coloca em uma situação onde o cuidado do outro para conosco é fundamental para nossa sobrevivência. E de fato, durante as fases iniciais da vida, muitos de nós tivemos uma atenção especial. Mas, uma vez que nos afastamos da infância e adolescência, quantos de nós conseguimos manter um compromisso com o corpo? Será que conseguimos ter compreensão do quanto determinadas transições exigem de nós? E o quanto poderíamos estar melhor preparados para lidar com essas fases?
Pra mim, é impossível falar da integração corpo, mente e natureza sem colocar em perspectiva os impactos econômicos, raciais, sociais e tecnológicos em nossas vidas.
Estamos cada vez mais empolgados com os recursos que a tecnologia e os serviços têm nos oferecido, alimentando uma esperança incoerente com o uso das inteligências artificiais, na expectativa de que elas possam aliviar a nossa exaustão criativa, ao mesmo tempo que comprimem o tempo do pensar.
Além disso, consumindo desenfreadamente em um cenário de desastre climático. E neste mesmo contexto, cada dia mais afastados de resoluções para questões básicas, que ditem em prol da vida, como saúde, renda mínima, igualdade racial, acessibilidade, preservação do meio ambiente e condições de trabalho adequadas para todos, todas e todes.
Poderia passar muito tempo correlacionando o tema do cuidado do corpo humano e do corpo mundo com pautas contemporâneas importantes, no entanto, essa desatenção para com os ciclos da vida e as doenças que nos acometem pelo nosso modo de vida não é mais um peso pelo qual devemos nos responsabilizar individualmente, é importante nos atentar para as incoerências desse sistema.
Mas para os Yepamahsã esse movimento contínuo de atenção para com a vida está intimamente ligado com a fecundidade da terra e é uma das coisas mais impactantes com a qual me deparei nessa leitura. Esse elemento que é capaz de “receber, acolher, nutrir e oferecer todos os elementos necessários para que qualquer tipo de corpo germine, cresça e produza, concebendo assim as múltiplas expressões do corpo”, também é um organismo que regula nossa experiência no mundo, logo, o cuidado com o corpo humano pressupõe antes de tudo o cuidado com o corpo Terra, em um movimento cíclico de manutenção das existências.
O mundo em mim: uma teoria indígena e os cuidados sobre o corpo no alto rio Negro, considerado um livro pioneiro no campo da antropologia da saúde é um convite para quem deseja mergulhar em uma teoria que concebe o humano enquanto um microcosmo da terra, onde a sinergia entre esses corpos é pré-requisito de existência. É olhar para dentro, olhar para fora, entender que nossos corpos humanos podem se servir do que está disposto no mundo para enfrentar os desafios que viver nos impõe, na mesma medida que precisa cuidar e preservar do cosmo.
Deixo abaixo um poema criado coletivamente na Escola Panapaná, uma instalação realizada pelo artista Denilson Baniwa, na Pinacoteca de São Paulo, com a qual visitei ao longo da leitura desse livro.
João topou bater um papo sobre o livro e seu processo de escrita e o resultado trago aqui abaixo.
Você conta um pouco no livro sobre seu percurso no mestrado e as dificuldades que encontrou para definir o campo da pesquisa do doutorado, devido a entraves institucionais de dois Hospitais da cidade de Manaus onde aconteceria seu campo, o que te levou a realizar sua etnografia no recém inaugurado Centro de Medicina Indigena Bahserikowi. Queria ouvir um pouco de você, depois do seu doutorado e da publicação do livro, algum tipo de aproximação aconteceu nesses espaços?
J: Depois que eu tive dificuldade de fazer meu campo no hospital, comecei a me perguntar e buscar outra possibilidade de lugar para isso. Num dado momento, eu pensei: meu pai também é especialista, ele também é médico, porque cuida da saúde das pessoas. Para cuidar da saúde das pessoas é preciso intervir sobre o corpo, mas cada um faz isso a partir das suas próprias concepções e tecnologias. Daí, me perguntei: Qual é a concepção que meu pai tem sobre o corpo? Porque, nenhum profissional de saúde é capaz de intervir sobre o corpo se não souber minimamente o que é o corpo, ou ter uma concepção sobre o corpo, o que chamamos de teoria do corpo. Esse foi meu ponto de partida. Com isso na cabeça, eu comecei a acompanhar meu pai e meus tios no Bahserikowi. Eles me contavam kihti-ukse, bahsese e bahsamori. Foi dentro desses três conceitos basilares do pensamento das teorias indígenas que eu consegui extrair a concepção do corpo, ataques do do corpo, modos de transformação do corpo e cuidados do corpo.
E como tem sido a repercussão dessa publicação? Como as pessoas têm recebido o livro? Como chega para você?
J: Uma vez eu fui convidado para participar de um evento sobre literatura indígena, nesse evento estava o Ailton Krenak. Quando foi a minha vez da falar, eu disse que não era escritor, que os livros que eu publiquei eram trabalhos de Dissertação e Tese, material que eu tinha que produzir obrigatoriamente sob risco de ficar sem diploma. Nesse sentido, eu fiz o trabalho para concluir meu curso de antropologia de mestrado e doutorado, mas eu tinha uma inquietação. Sempre queria evidenciar as concepções, categorias ou conceitos propriamente nossos se valendo da Antropologia. Foi isso que eu fiz, tomei a Antropologia como instrumento para pensar o pensamento indígena.
Depois que defendi a tese, os coordenadores do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFAM, decidiram indicar para o Prêmio CAPES. E minha tese foi agraciada com o Prêmio de melhor Tese entre as áreas de conhecimento de Antropologia e Arqueologia. Depois, a tese foi transformada em livro, e os professores dos Programas de Antropologia das Universidades do Brasil começaram a ter acesso e começaram a divulgar. Dai recebi muitas parabenizações e a tese foi reverberando entra as aéreas de estudo de Direito, Medicina, Artes, entre outras áreas. Hoje tenho recebido muitos convites para palestras em todo Brasil.
Está trabalhando em algo novo ou na ampliação desse trabalho?
J: Agora estou cursando Pós-Doutorado na mesma Universidade onde me formei. Não tenho um projeto para desenvolver outro trabalho dessa natureza, visto que eu tenho que dar conta das minhas “invenções” no Centro de Medicina Indígena Bahserikowi e no Biatuwi – Casa de comida Indígena que estão localizadas no centro da cidade de Manaus. Além disso ando prestando algumas consultorias pontuais. Isso já é bom. E muitas vezes não dou conta de tudo.
Gostaria de acrescentar algo a mais que não foi mencionado na escrita dessa coluna e que considera fundamental?
Só gostaria de dizer que meu esforço é promover diálogo entre os diferentes modos de conhecimentos. Ciência é apenas um modelo de conhecimento e não é absoluta. O nosso conhecimento (indígena) é outro modelo, que opera a partir das suas próprias concepções, ou conceitos. Nem um, nem outro é melhor ou pior modelo, são apenas diferentes. É nessa diferenças que devemos aprender a promover o diálogo e respieto.
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ótimo nos trazendo conhecimento deste ambiente ..