Por que olhamos tanto para fora e não escavamos para dentro?
#Te Indico Um Filme: EU.
Nos últimos meses me peguei observando a quantidade crescente de conteúdos abordando dois temas: inteligência artificial e saúde mental. É claro que um filtro pessoal, movido por interesse, pode ter me direcionado para estas leituras específicas. No entanto, sei que, assim como eu, outras pessoas se viram na necessidade de entender um pouco mais teoricamente sobre os avanços da inteligência artificial, bem como seus limites éticos. Ao mesmo tempo, os estudiosos do campo da mente têm reverberado a preocupação com a saúde psíquica do brasileiro.
O crescimento dos transtornos psíquicos é confirmado através de estudos de instituições como a Universidade de São Paulo (USP), que em 2021 confirmou através de uma importante pesquisa que em uma lista com 11 países o Brasil lidera com mais casos de ansiedade (63%) e depressão (59%), na frente, por exemplo, dos Estados Unidos. De acordo ainda com pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), 40,4% dos brasileiros participantes do estudo se sentiam tristes ou deprimidos constantemente, enquanto que 50,6% relatavam casos de nervosismo e ansiedade.
Essas informações e a observação sobre como nossas relações de trabalho se dão, como as estruturas sociais se estabelecem, a violência, as cobranças geradas pelas constantes atualizações das redes sociais e mais uma série de fatores, decorrentes destes e de outros aspectos, se conectam, para mim, à preocupação da Organização Mundial de Saúde (OMS) quanto a saúde mental no país. E, como mulher negra, não posso deixar de ressaltar os efeitos do racismo sobre a saúde mental da população negra, sobretudo, a feminina, que é impactada pela opressão interseccional.
É inquietante pensar que somos bombardeados com milhares de informações e demandas a cada minuto, misturados a complexos de dados, num fluxo exaustivo e doentio, mas seguimos alheios a necessidade de olhar para dentro em busca de autoconhecimento.
Fui procurar uma definição bastante básica para a IA (artificial intelligence), uma espécie de tradução para leigos. Pois bem, podemos entender que se trata de um avanço tecnológico capaz de fazer com que sistemas simulem uma inteligência similar à humana, para além da tomada de decisões baseadas em padrões de bancos de dados através da programação de ordens específicas. Várias discussões fundamentais e importantes desdobram daí, positivas e negativas, mas me ative em contraposição à discussão macro, na especificidade de nosso EU mais particular, esta capaz de gerar justamente a autenticidade que nos diferencia enquanto indivíduos. Este EU impregnado de memórias, vivências, conhecimentos e talentos.
Por que no fluxo desvairado da produção e do crescimento, mergulhados em uma sociedade capitalista e midiática, nos esquecemos do básico?
Por que olhamos tanto para fora e não escavamos para dentro?
Por que automatizamos tanto e somos impedidos de (ou não sabemos como) maturar nossos próprios sentimentos? Por que não nos observamos, num desejo de análise sincera e verdadeira?
Os pensamentos destes dias me fizeram optar por indicar nessa primeira travessia juntos o documentário EU, de Ludmila Dayer, disponível na plataforma Aquarius, serviço de streaming focado em bem-estar e saúde.
De início, quando convidada para colaborar com a Travessias Revista Digital, não tinha imaginado este caminho, mas ele surgiu como um impulso real e o segui. Vejo no filme muitos valores a serem compartilhados, uma mensagem importante que de fato pode servir de alerta a muitas pessoas com dificuldade de entender os processos pelos quais estão passando. O documentário autobiográfico narra a jornada da artista para lidar com o diagnóstico de esclerose múltipla e síndrome do pânico, revelando parte de seus caminhos e processos em busca de equilíbrio físico, mental e emocional.
Em 2019, Ludmila Dayer, então com 36 anos de idade, sofreu o primeiro ataque de pânico, situação que se repetiu por dias. Buscando respostas para o que sentia, ela passou por diversos profissionais, até ser diagnosticada com o vírus Epstein Barr - Crônico. A diretora havia decidido fazer o longa antes mesmo do diagnóstico, quando vivia com uma infecção crônica (decorrente do vírus), que causava sintomas de fadiga, dores e irritação nas membranas mucosas. Ela relata que tinha crises de pânico e ansiedade que a impediam de sair de casa, sendo difícil explicar para as pessoas os efeitos de sua saúde mental.
Quando o diagnóstico veio, teve de fazer uma pausa para se tratar, e ao retornar entendeu que o caminho do filme era outro, mais pessoal, narrado em primeira pessoa. É esta jornada e os passos dados em busca de autoconhecimento que Ludmila partilha com o espectador, através de imagens, reflexões, informações e entrevistas. A própria diretora narra em off enquanto a atriz e amiga Fernanda Souza a interpreta, em locações que variam entre o Rio de Janeiro, São Paulo e Varginha, onde Ludmila fazia um tratamento em 2021.
Uma direção interessante que Ludmila toma é no sentido da quantidade de “ferramentas” que ela mobiliza e agrega à narrativa de seu filme. Neurociência, espiritualidade e aspectos da existência se combinam potencializando sua cura e ampliando um campo de discussão. Existem depoimentos de profissionais variados sobre a temática: Dra Eleanor Luzes (médica psiquiatra), Dr Diogo Lara (neurocientista), Dra Sandra Regina (médica, consteladora familiar e mentora), Max Tovar (xamã) e Waldemar Falcão (autor e astrólogo). “Eu” se divide em algumas partes: “autoconhecimento”; “a origem, período pré natal”; “o mapa gestacional”; “hierarquia e ancestralidade”; “a biologia da crença”; "o poder do coração”; e “a cura”. Desta forma, através de uma experiência pessoal, o espectador é capaz de identificar que às vezes sequer imaginamos a origem de certos aspectos “problemáticos” de nossas vidas (sem spoiler).
Eu é na verdade uma proposta bem simples, mas creio que sua beleza está justamente nesta simplicidade e em seu gesto genuíno como desejo de partilhamento.
Há beleza nos pequenos gestos e acontecimentos, acho que isso dita a tônica da narrativa.
Trata-se de uma abordagem de comunicação fácil e direta. Também é bonito pensar na força que os momentos de vulnerabilidade podem gerar: Ludmila roteirizou, produziu, dirigiu, editou e fez a fotografia do filme através da Lupi Productions, produtora própria com sede em Los Angeles, onde reside desde 2006. O documentário nos convida então a observar a dinâmica da existência hoje, a considerar a fragilidade e a instabilidade como vigor, sendo ele mesmo um relato sobre a vida em processo.
Ficha técnica
Produtora: Lupi Productions (USA)
Direção e roteiro: Ludmila Dayer
Direção de fotografia: Ludmila Dayer
Atriz convidada: Fernanda Souza
Edição: Ludmila Dayer e Thales Corrêa
Música: Filipe Leitão
Produção: Ludmila Dayer
Produção executiva: Ludmila Dayer e Fernanda Souza. Produtores associados: Anitta e Thiago Pavarino.
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Muito bom! Já me deu uma aterrada aqui so em ler o artigo. Quero assistir o filme. Obrigada pela indicação
ótimo conteúdo ... estou divulgando ...no face..link..tuiter