Tenho pra mim que a relação com a tecnologia é uma grande incógnita. De um lado, os “defensores” da revolução tecnológica diriam que é um caminho sem volta, que já faz parte do ser humano, que permitiu a humanidade avançar em tantas direções (como saúde, transporte, informação, conforto, lazer etc); e de um outro lado, os “críticos”, argumentam que deveria ser uma ferramenta e não um fim ou sinônimo de progresso, que se torna cada vez mais alienadora distanciando o ser humano de sua natureza essencial e que por si só não responde às necessidades humanas fundamentais.
Bem, como um amante do pensamento complexo e da ciência, não fico com nenhum peso dessa balança e, sim, gosto de avaliar tudo isso à luz do que pode surgir. Até porque acredito que as duas correntes acabam por acontecer de fato simultaneamente.
Desde que o homo sapiens começou a dominar a técnica, seja de lapidar a pedra para criar ferramentas que o facilitasse algumas tarefas, seja o domínio do fogo, ou mais ainda a agricultura e a domesticação de animais como tentativa de exercer seu controle sobre a natureza, sempre se caracterizou por uma relação de fascínio (pelo poder) e busca incessante por mais. Há quem diga que essa “ganância” permitiu o “desenvolvimento” (com todas as ressalvas necessárias para se questionar que modelo estamos chamando de desenvolvimento). Porém, o maior desafio (até então muito ignorado) é equilibrar este tal “desenvolvimento” dos avanços tecnológicos com a vida que está incorporada a ele. Ou seja, estamos falando de tudo no planeta (pessoas, recursos, natureza, relações, etc) que no fundo é a base de qualquer desenvolvimento e que também é impactado pelo mesmo. Só que o encantamento pelo desenvolvimento e a tecnologia foi tamanho que a partir da revolução industrial, do liberalismo e do capitalismo esse equilíbrio se dissolveu.
E agora?
Será que essa consciência por uma tecnologia que ajude a humanidade a sair do buraco que se enfiou vai realmente resgatá-la e regenera-la ou vai cavar ainda mais?
Lembro dessa frase de Gandhi que muito me marcou:
“Quero que os milhões silenciosos de nossa terra sejam sadios e felizes e quero que cresçam espiritualmente... Se sentirmos a necessidade de máquinas, certamente as teremos. Cada máquina que auxilia todo e qualquer indivíduo certamente tem seu lugar.”
(…)
“mas não deve haver lugar para máquinas que concentram o poder em poucas mãos e transformam as massas em meros guardadores de máquinas, se é que não as lançam no desemprego.”
Em paralelo a essa visão de Gandhi, trago a contribuição de Mário Sérgio Cortella e o valor do trabalho. Para ele, o trabalho é nossa razão de existência (não o labor), o que nos completa, nossa função social, humana e planetária, aquilo que permite materializar nossa subjetividade, que transcende a função biológica. Trabalho se diferencia na condição humana com aquilo que Hannah Arendt se refere na constituição do mundo e que está diretamente inserido em uma cultura. Agora, como as novas tecnologias da revolução 4.0, learning machine, Big Data, Internet of Things, Inteligência Artificial, estão interferindo o passo da relação do ser humano com o trabalho? A tecnologia estaria condicionando a vida humana e planetária?
Aldous Huxley já nos provocava sobre o valor da tecnologia como um fator de emancipação da massa de trabalhadores para, finalmente, se desvencilharem da árdua obrigação do emprego e, então, serem capazes de realizar trabalho lucrativo e intrinsecamente significativo, para ajudarem homens e mulheres a conseguir sua independência dos patrões. Nessa perspectiva, esse conjunto de tecnologias permite que o ser humano não precise mais desempenhar ações desnecessárias já que as máquinas poderiam fazê-las e que então pudesse desfrutar de uma vida com mais propósito, associativa e colaborativa que alcance uma progressiva descentralização da população, do acesso à terra, da propriedade dos meios de produção, de poder econômico e arranjos mais democráticos. Assim como Huxley, décadas mais tarde, Jeremy Rifkin incorpora a ideia de que esse conjunto de tecnologias, softwares e hardwares permitem maior controle da produção nas mãos das pessoas pela redução do custo marginal de produção. A ideia por detrás dessa visão é de que a tecnologia facilitaria tanto a produção de bens necessários num futuro (não muito distante) que reduziria drasticamente a necessidade de mão-de-obra, o governo poderia beneficiar uma renda básica para todos e que “sobraria” para o ser humano produzir suas próprias necessidades facilitadas por inteligência artificial, impressoras 3D, big data, hiper-conectividade e etc. E também permitiria mais tempo para criar, serem mais autênticos e colaborativos fortalecendo laços comunitários e a relação com a natureza.
Até aí parece um ode à tecnologia salvadora. Porém, supondo que tudo isso se realizasse em plenitude, qual seria o caminho a percorrer até lá? Quem se beneficiaria disso? Quem não estaria fazendo parte dessa foto?
Confesso que não acredito em uma suave transição que não seja acompanhada de intensos conflitos sociais daqueles que vão perder seus postos de trabalho para máquinas - isso já acontece desde automação em fábricas, e atendentes até tradutores, que então já começam a perder seus recursos de subsistência - àqueles que não são privilegiados de conhecimento em tecnologia (ou não detém recursos, gadgets, hardware, ou mesmo perfil para usufruírem dessa tal benesse). E claro, ainda permanece uma pulga atrás da orelha sobre a que custo ambiental essas tecnologias todas se sustentariam, em termos de materiais, minérios, energia, etc.
Essa corrente a favor de uma revolução tecnológica 4.0 e salvadora ainda me parece ser liderada por uma parcela de pessoas, empreendedores e corporações e parece que essa vantagem ainda permanecerá desigual pelo princípio de que ainda (por muito tempo) será tomada por aqueles que buscam o lucro e reduzir custos de produção. No mesmo sentido que quem perde continua sendo uma massa de desempregados. Claro que já se vê ações na base da pirâmide social se desenvolvendo nesse sentido e que futuramente é possível que o custo de produção seja tão reduzido que essas empresas orientadas pela extração e lucro acabem por não ter lá grandes vantagens, mas me questiono como o poder político hegemônicos dessas elites estarão abertos para uma mudança acontecer de uma forma “natural”. E muito ainda precisa se discutir e avançar sobre renda básica igual para todos enquanto a pauta do debate ainda está se o programa “bolsa familia”, por exemplo, é necessário ou não. Enfim, a necessária reflexão coletiva está no quanto esses conjuntos de tecnologias são, de fato, fundamentos de uma inovação social transformativa ou no fundo endereçam mais do mesmo.
O que me importa aqui é a reflexão de que as variáveis nesta pequena análise só aumentam e alimentam paradoxos. A tecnologia realmente auxilia o acesso à informação, diagnósticos médicos, a descentralização e a conexão entre as pessoas; mas no mesmo passo desvirtuam a realidade, segmentam, hiperespecializam e alienam toda uma geração viciadas em seus gadgets e as redes sociais. No mundo em que ChatGpt é uma ferramenta avançada de integração da informação, ao mesmo tempo assustam os sistemas educacionais preocupados com a fraude e o plágio.
Mas será que nós educadores estamos usando a forma certa de avaliar o aluno?
Será que o ChatGpt realmente é uma afronta ou uma oportunidade para vermos que precisamos avaliar os estudantes de outra forma? E talvez até mesmo mudar a forma de educar? Não através dele, usando ele, mas justamente olhando para aquilo que ele não é... Será que a inteligência artificial realmente é capaz de fazer tudo que o ser humano é? Em que as máquinas vão sobrepôr os seres humanos?
Voltando à frase de Gandhi e me inspirando em E.F. Schumacher, a relação com a IA deve ter uma “escala mais apropriada”, do tamanho humano. Exige também que principalmente reconheçamos que IA não é nada além do que uma boa ferramenta para ser usada com confiança, ética e parcimônia. Que deve ser sempre verificada, não é perfeita e não é superhumana. Este é o momento de perceber até que ponto pode nos ajudar e até que ponto não; refletir sobre o significado de inteligência empregado nas máquinas e quantas outras inteligências existem que talvez não sejam tecnológicas; elaborar a necessidade de uma grande reforma do trabalho - mas igualmente do que precisamos para viver uma vida próspera.
Tão importante quanto reduzir a carga de exaustão dos trabalhadores (como máquinas), facilitar a vida da multidão de pessoas cansadas e descentralizar o poder, é também repensar a forma de viver e ter o cuidado para que IA e outras tecnologias nos ajudem a transcender e não aumentar a desigualdade, o impacto sobre a natureza, a pandemia da saúde mental e consumismo.
💠 Conheça o livro Pensamento Vivo- As plantas como mestras
Em tempos em que podemos deixar boas partes de nossas vidas nas mãos de robôs e gadgets, é bom lembrar o que as plantas têm a nos ensinar. O mais recente lançamento da Bambual Editora vem abrir exatamente esses caminhos de saberes.
Este é muito mais do que um livro sobre plantas – embora ele também discorra sobre como podemos desenvolver a capacidade de apreciação mais profunda desses seres vivos.
O autor, Craig Holdrege. surpreende por sua eloquência, elegância na escrita e intimidade com o mundo natural. Ele consegue tratar de questões filosóficas e práticas profundas, por meio de uma linguagem encantadora, que o aproxima do leitor, como bom e experiente professor que é.
Sua trajetória tem como inspiração a fenomenologia goetheana e o trabalho de Rudolf Steiner, reflexões e práticas que se relacionam de forma extremamente relevantes com as questões do mundo atual. Assim, é não dogmática e viva.
A inovadora proposta do pensamento vivo é construída pelo autor com o concatenar de percepções que somos levados a ter a cada exemplo, história e reflexão. De maneira didática e guiado sempre pelo que o mundo oferece àqueles determinados a experienciar a si mesmos como participantes conscientes no processo planetário, o autor parte do que é o pensamento-objeto e segue para além da visão sistêmica, em um conhecimento refinado, que nos leva ao pensamento vivo.
Este livro é, ao mesmo tempo, uma revisão da construção intelectual acerca do mundo natural e um chamado para uma nova relação com não-humanos, tão necessária. Eles estão somente nos esperando…
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