"Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular. Escutar é complicado e sutil.”
Rubem Alves
Escutar. Pode parecer uma ação simples, afinal, é algo intrínseco de todas as pessoas que não têm alguma condição especial de audição. Estamos o tempo inteiro ouvindo algo. Seja o barulho do ônibus passando na rua, o latido do cachorro do vizinho, os pássaros, o cortador de grama. Os vizinhos no corredor, a playlist montada detalhadamente, o choro do bebê, os macacos acordando com o nascer do sol, as ondas do mar batendo nas pedras, a TV ligada, o áudio da amiga que não encontra faz tempo, as notificações de mensagens, os avisos sonoros da agenda, os alarmes, os vídeos aparecendo a cada vez que você pega o celular, o podcast da vez, o lamento da senhora que aguarda na fila do mercado, as infinitas reuniões, os causos do motorista do aplicativo, as histórias embaralhadas (mas incrivelmente lúcidas) do seu avô, as descobertas do seu afilhado de 5 anos… Ufa! Somos envoltos por uma infinidade de mensagens e sons. Alguns mais agradáveis do que os outros. Vivemos imersos em uma verdadeira polifonia. Mas será que estamos, de fato, escutando?
Hoje iniciamos a travessia #14: ESCUTAR. E por que a escolha dessa ação? Por que consideramos essa uma habilidade fundamental para os dias de hoje? Bom, em uma época de tantas informações aceleradas, encontros virtuais, encontros físicos, tantas mensagens, notícias e fake news, estamos hiper-estimulados, escutamos tudo ao mesmo tempo. Estamos ouvindo demais, mas pouco disponíveis para escutar de verdade.
Ouvir é uma ação básica da vida, mas precisamos reaprender a escutar. Como disse Rubem Alves, na crônica “Escutatória”, escutar é uma ação complicada e sutil. E você deve ter reparado que todas as travessias que fizemos por aqui trazem temas sutis como “sonhar”, “cuidar”, “desacelerar”. Veja, são ações cotidianas, intrínsecas dos seres humanos, mas que demandam uma qualidade de apreciação da vida para além de algo material. E, talvez, essa crescente admiração pelas máquinas, estejam nos aproximando mais dos robôs do que da nossa essência.
Mas há quem queira aprender… Escutar anda tão importante que hoje em dia já existe Curso de Escutatória (e, contrariando Rubem Alves, tem muita gente interessada em se matricular). Thomás Brieu é quem conduz esse curso. Ele é pesquisador em escutatória e comunicação assertiva e aceitou bater um papo para iniciar essa travessia com a gente.
Convido você, que chegou até aqui, a ler com presença e assim já começar a exercitar a escuta aberta. Pega um café, um chá e vamos iniciar a travessia…
A crise da escuta
Perguntei ao Thomás por que parece que estamos vivendo uma espécie de crise da escuta, em que ninguém mais parece conseguir ouvir a outra pessoa e ele explicou que tem a ver com a época em que estamos inseridos.
Vivemos em um tempo em que a oferta de conteúdo, informação e dispositivos em que podemos nos expressar está crescendo, mas em contrapartida a capacidade de escuta está caindo. Estamos todos falando, falando, falando… mas será que tem alguém nos ouvindo?
"A produção de informação está completamente desproporcional à nossa capacidade de escutar que continua limitada. E este desequilíbrio vai se ampliar, porque o ser humano não é mais o único produtor. Agora nós estamos usando ferramentas de robôs como a IA (Inteligência Artificial) para produzir informações. Então, temos muitas palavras que são ditas, mas que não são escutadas. Muitas coisas escritas e que não são lidas.
Além disso, estamos terceirizando nossa escuta com a IA. Como não temos tempo nem atenção suficiente para absorver tantos conteúdos, nós pedimos para que a IA escute e faça um resumo para a gente. Ou pior, que ela faça uma síntese e tome uma decisão para nós."
Além da quantidade de plataformas e informações que chegam até nós, tudo ao mesmo tempo, ele salientou outro agravante: a aceleração.
"Podemos nos comunicar simultaneamente no WhatsApp, no e-mail, no Messenger, no Instagram, em todas as telas combinadas e aceleradas… Mas nossa compreensão, nosso ritmo interno não é capaz de acompanhar esse aceleramento. Perdemos a paciência, porque temos a demanda de sermos multi-tarefas, mas nós não somos."
Escuta: um ingrediente fundamental para criar conexão
Você ouve para escutar e compreender ou para responder? É mais comum do que gostaríamos que fosse, mas o tempo todo nós presenciamos diálogos em que não somos ouvidos realmente ou que não ouvimos de verdade a outra pessoa.
Enquanto uma pessoa fala a outra já está pensando no que responder. Como disse Rubem Alves no decorrer da crônica citada no início da coluna “a gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer”.
E quem perde com tudo isso? Nós. A dificuldade em estarmos presentes, com uma escuta ativa nas conversas, está nos afastando da capacidade de criar laços profundos e duradouros. Segundo Thomás, há estudos que demonstram que a falta do cultivo de presença e atenção é o início para o declínio da empatia. "Temos uma oferta grande de informações, mas uma pobreza de atenção, e com isso presenciamos o declínio da empatia. Para mim, atenção, escuta, empatia, interesse genuíno, curiosidade, são palavras que andam juntas, estão todas no mesmo bolo".
Para a construção de relações saudáveis é preciso se interessar pelo outro, querer ouvir o infinito particular daquela pessoa, antes de sobrepor a própria história.
Como podemos escutar melhor?
Escutar bem é decidir onde colocamos nossa atenção. Pudera, como já dito, em um mundo tão demandante de atenção, dedicar uma presença completa ao ouvir o outro é ouro. E como fazer isso?
Thomas explicou que o primeiro passo, talvez seja aceitar que não somos bons ouvintes. E diante dessa percepção humilde, conseguimos desenvolver estratégias para escutar mais e melhor.
Outra coisa importante é ter um repertório de perguntas. Através de bons questionamentos, podemos aprofundar as conversas. "Sempre caímos em uma armadilha, porque estamos acostumados a usar perguntas fechadas. As pessoas que vão se diferenciar são aquelas que sabem fazer as perguntas certas".
Outra ação que podemos fazer para exercitar uma escuta aprimorada é o exercício de suspensão temporária do ego. "Suspender os julgamentos prévios, aquietar a mente que quer ter razão, que sempre julga, para conseguir acolher as palavras do outro como são, para poder lidar com as diferenças. A grande arte da escuta é saber lidar com opiniões diferentes, e saber se interessar pelo outro sem ter medo de escutar.
Mas ele diz que não basta escutar, precisamos fazer com que a outra pessoa sinta que foi escutada.
Como? Bom, o início do caminho para isso é sair do piloto-automático. Ao invés de responder logo alguma coisa que já estava na ponta da língua, podemos inspirar. "Quando você inspira antes de responder, você dá uma prova de escuta, mostra que a palavra do outro tem impacto em você. Ao inspirar, você sai do automático, vai na sua programação mais colaborativa, cooperativa, empática.
Interagir genuinamente e com curiosidade também é a chave para uma boa escuta. Podemos apontar alguma parte da história que nos chamou a atenção, se interessar pela narrativa, checar detalhes. A nossa postura corporal também pode ajudar. Acompanhar os movimentos de quem fala e manter os olhos nos olhos durante a conversa, melhoram a conexão.
Saber ouvir além
Se queremos criar e vivenciar mundos com realidades mais harmoniosas e coletivas, devemos reaprender o básico. Aprender com os antigos e com aqueles que fazem questão de ouvir para além do que está sendo dito. Para além do que a boca humana diz. Precisamos nos influenciar por aqueles que são capazes de ouvir os rios, as árvores e a semente a ser germinada.
A escuta ativa demanda lidar com o silêncio e com o tempo. Silenciar. Esperar o outro falar. Observar as entrelinhas contidas nos gestos e voz. Prestar atenção no que não foi dito. Digerir o que ouviu. Silenciar novamente.
Para criarmos conexões reais é necessário ir além do convívio e do respeito mútuo, precisamos nos abrir e nos interessar pela outra pessoa, pelos seres que nos rodeiam. Somar nossas histórias, confusões e delicadezas.
“Para mim Deus é isso: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto…”
Para conhecer mais sobre os livros e cursos oferecidos pelo Thomás Brieu acesse o site.
Nas próximas semanas navegaremos pela escuta junto com nossos colunistas. Quem abre os caminhos é
que vai falar vai fazer uma viagem no tempo profundo sobre a escuta. Você sabe de qual animal nós herdamos a escuta? Aguarde essa coluna para descobrir. Na semana seguinte é a vez de esmiuçar o poder da escuta para a qualidade dos afetos.Para receber as próximas colunas, conteúdos exclusivos e outros benefícios da Comunidade Travessias faça uma assinatura por R$29.
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