3# Diário de bordo: histórias de quem mudou a rota
Entrevista com Lucimara Letelier, fundadora do Regenera Museu
Diário de bordo é um quadro da Travessias - Revista e Comunidade Digital, em que entrevistamos pessoas que mudaram de rotas. A ideia é descobrir as travessias, com as dores e as delícias, daqueles que traçaram novos caminhos de vida, desafiaram o status quo e construíram (e seguem construindo) um viver mais regenerativo e com mais sentido.
Lucimara Letelier é a entrevistada da vez. Ela é Fundadora e Diretora da RegeneraMuseu, uma organização comprometida em promover práticas sustentáveis e regenerativas em museus e no setor de artes e cultura para defender a adaptação, mitigação e resiliência climática no Brasil e no exterior. É vice-presidente do ICOM SUSTAIN e curadora da série #SomosMuseus do Canal Futura.
Ufa! Quanta coisa boa, né? Vamos descobrir como ela chegou até aqui?
Leia a entrevista e se inspire com a travessia de Lucimara Letelier:
O que fazia e o que faz agora? Conte um pouco sobre a trajetória de transição ou transições que passou?
Lucimara Letelier: A gente passa por muitas transições na vida, né? Mas vou falar da que talvez tenha sido a mais marcante na minha trajetória.
Durante muitos anos, atuei no setor cultural e social. De 2012 a 2016, fui diretora-adjunta de Artes do British Council, responsável por um programa de intercâmbio cultural entre o Reino Unido e o Brasil. Um dos focos era a economia criativa, envolvendo museus, festivais e projetos ligados às Olimpíadas — em especial, a ponte cultural entre os Jogos de Londres e os do Rio.
Apesar de todas as conquistas, comecei a perceber um certo distanciamento da motivação original que me trouxe para esse campo: a crença de que a arte e a cultura podem transformar realidades. Quando cheguei em São Paulo, lá em 1996, era esse o meu sonho: trabalhar com instituições culturais como espaços de educação e transformação. Com o tempo, fui me afastando do contato direto com as pessoas e com esse propósito mais profundo.
Além disso, questões socioambientais começaram a me convocar de forma mais intensa. Eu já tinha consciência da crise climática, mas ainda não atuava diretamente com ela. Sentia que podia e precisava usar minha experiência e capacidade de articulação para algo mais alinhado a esse chamado.
Hoje, trabalho com culturas regenerativas aplicadas aos museus, para que eles se tornem agentes ativos na mitigação, adaptação e resiliência diante da crise socioambiental. É uma atuação que me reconecta com aquele desejo inicial de transformação, agora ampliado por uma visão mais sistêmica e urgente do mundo.
O que te fez mudar a rota? Existiu algum ponto de virada mais marcante?
L: Minha mudança de rota foi resultado de uma confluência entre vivências pessoais profundas e inquietações profissionais. No plano pessoal, enfrentei perdas gestacionais em sequencia e acompanhei a doença e falecimento da minha mãe por câncer.
Essas experiências que me trouxeram uma consciência aguda da finitude e da urgência de viver com integridade e propósito. Senti uma urgência de trazer vida para os meus trabalhos.
Foi nesse momento que eu passei a procurar cursos, formações, experiências que conectassem sustentabilidade, cultura e regeneração. Busquei pessoas que me inspiravam: gente com trajetória na cultura ou no social, mas que atuavam de forma autêntica, com leveza e colaboração. E foram essas pessoas que me apresentaram caminhos fundamentais. Foi nesse contexto que entrei em contato com o Gaia Education, onde me formei como designer em sustentabilidade e regeneração, e conheci as ecovilas, que transformaram minha visão de mundo. Esses espaços me mostraram que é possível viver de forma regenerativa e me inspiraram a trazer esse conhecimento para a área que eu conhecia: museus e cultura.
O ponto de virada profissional veio justamente ao perceber que, apesar de tantas discussões sobre sustentabilidade, a cultura e os museus estavam à margem desse debate. Essa lacuna me motivou a criar o Museu Vivo em 2017 e, mais tarde, refundado como RegeneraMuseu, aprofundando a prática com uma pesquisa com uma bolsa no Reino Unido, onde, onde criei e conceituei a ideia de museus regenerativos em uma tese acadêmica.
Foi um processo de retorno à origem — ao desejo profundo de transformação social e agora também ambiental, de trabalhar com instituições culturais que possam contribuir para mitigar, adaptar e regenerar frente à crise do planeta e humanitária.
O que começou como uma inquietação virou um campo de atuação sólido e cada vez mais relevante diante dos desafios climáticos contemporâneos.
Quais foram os desafios encontrados? Como passou por eles?
L: Um dos principais desafios foi justamente o pioneirismo. Trazer os conceitos da cultura regenerativa para o campo dos museus é um movimento ainda muito inicial — assim como outras pessoas vêm fazendo com a educação, a justiça ou a economia. É como abrir uma trilha no meio da floresta: exige escuta, persistência e a construção de um espaço para algo que ainda não é plenamente reconhecido ou compreendido.
Desde que comecei esse caminho, em 2017, o desafio tem sido manter a consistência e aprofundar essa atuação, mesmo sem uma estrutura de mercado estabelecida. Lá atrás, a ideia era vista como interessante; hoje, ela já inspira mais pessoas, aponta caminhos, mas ainda não oferece estabilidade financeira para quem a sustenta.
Empreender uma ideia socioambiental que não é mainstream exige inventar formas de sustentação, tanto da proposta quanto de quem a carrega. No meu caso, foi preciso integrar outros saberes e práticas que já desenvolvia, como consultorias na área de gestão de museus e desenvolvimento institucional. Consegui também uma bolsa de estudos no Reino Unido, que foi fundamental para aprofundar essa pesquisa.
Outro ponto essencial foi me conectar com uma rede de pessoas que também estão trilhando esse caminho regenerativo em diferentes áreas. A troca com esses parceiros — essa rede de "gaianos" — foi e continua sendo um suporte vital. Essa conexão me lembra que não estou sozinha, e que há um ecossistema emergente construindo outras formas de viver e atuar no mundo.
Quais foram as coisas boas que encontrou pelo caminho graças a essa decisão?
L: Uma das coisas mais bonitas dessa jornada foi o entendimento da Visão Sistêmica. Foi quando entendi que não vai haver mudança regenerativa no campo dos museus se eu (e os outros profissionais de museus) não nos transformarmos regenerativamente. Então, o tesouro encontrado é a transformação de mim mesma.
Eu comecei a estudar o que faria de mim uma ser humana íntegra, autêntica, dentro desse campo de atuação. Uma das coisas boas que encontrei ali foi a questão da integração da minha identidade racial, eu passei por um processo de decolonialidade de mim mesma, da minha própria linguagem, do meu modo de ser, de meu modo de viver.
Eu percebi como os caminhos de autoconhecimento e desenvolvimento pessoal que trilhei ao longo da vida começaram a se alinhar com meu trabalho com regeneração. É como propõe o Ken Wilber com a ideia da espiral evolutiva — à medida que avançamos, revisitamos diferentes níveis com mais consciência. Isso me permitiu integrar meu próprio processo interno à prática profissional, especialmente na aplicação da regeneração ao campo dos museus.
Passei a enxergar com mais clareza que essa transformação acontece em três dimensões interligadas: o “eu” (autoconhecimento), o “nós” (comunidade) e o “todo” (a dimensão planetária e sistêmica da mudança). E quando comecei a me colocar verdadeiramente nesse caminho, com vulnerabilidade, escuta e entrega, os sinais foram aparecendo.
Lembro muito da May East, uma das facilitadoras do programa "Training of Trainers" do Gaia Education, que falava sobre “serendipidade”: a ideia de que o caminho vai se revelando conforme a gente caminha. E foi exatamente isso que vivi: à medida que dava um passo, surgia a próxima pedra onde pisar.
Encontrei redes, apoios, oportunidades, esperança ativa e até fé renovada. E, talvez o mais surpreendente e comovente: percebi que comecei a inspirar outras pessoas. Pessoas que, ao ouvirem minha história, tomaram coragem para iniciar suas próprias jornadas regenerativas em suas áreas de atuação. Isso me mostra que o caminho, apesar dos desafios, é fértil. E que compartilhar esse percurso é parte do próprio processo de transformação.
Qual leitura te ajudou a navegar pelo mar da transição?
L: Olha, tem vários livros que me ajudaram a navegar nessa transição, mas eu falaria de quatro, pelo menos:
O Design de Culturas Regenerativas, do Daniel Wall é essencial. Porque ali, eu encontrei a base do que é o pensamento regenerativo. Ele me deu uma base conceitual e prática para compreender a regeneração como um processo sistêmico — que envolve não apenas o ambiente, mas também as relações, os territórios e as culturas.
O Memórias da Plantação, da Grada Kilomba, foi um guia para aprofundar minha consciência racial e integrar a dimensão decolonial ao meu propósito regenerativo. Um Defeito de Cor, da Ana Maria Gonçalves, me ajudou a compreender como minha história pessoal — marcada por heranças africanas, indígenas e europeias — se entrelaça com a história do Brasil e influencia minha atuação no mundo.
Já o livro Museus e o Colapso Socioambiental, do Robert R. Janes, abriu caminhos para pensar criticamente o papel dos museus frente à crise planetária. Ele não fala diretamente de regeneração, mas foi um ponto de virada. A partir dessa leitura, pude dialogar com o autor (que hoje é parceiro da minha pesquisa!) e fortalecer minha proposta de museus como agentes regenerativos. Essas obras me ajudaram a alinhar quem eu sou com o que eu faço, a partir de uma integridade profunda entre identidade, história e ação no mundo.
O que você gostaria de ter escutado lá no início:
L: Eu gostaria que alguém tivesse me dito com mais firmeza, lá no começo, algo que escutei depois e só entendi vivendo: chegue com uma mente principiante. Isso significa: limpe o que você acha que sabe. Coloque de lado os saberes cristalizados, os títulos, as certezas. Para acessar um lugar verdadeiramente regenerativo, é preciso vulnerabilidade e disposição para reaprender tudo.
A destruição do planeta vem, em grande parte, de ideias sedimentadas, normatizadas — conceitos herdados de uma lógica colonial que justificou a exploração da natureza e das pessoas. Precisamos de novas lentes, novos imaginários. E para isso, precisamos estar dispostos a desaprender.
Foi só quando a vida me colocou em contato com minhas vulnerabilidades — com a perda, a doença, a morte — que eu consegui me abrir. Parei de buscar uma carreira de sucesso como diretora de instituições e comecei a me colocar a serviço da vida, da regeneração, do que o mundo estava precisando.
Quais são as perspectivas e planos futuros?
L: O futuro da minha atuação está alinhado à expansão da RegeneraMuseu, organização que fundei com o propósito de contribuir para a regeneração planetária por meio da cultura e dos museus. O plano é aprofundar e ampliar essa prática, formando novas lideranças, oferecendo cursos, aulas, consultorias e criando mais conteúdos digitais que tornem esse conhecimento acessível e aplicável.
Quero construir uma rede mais robusta de profissionais preparados para atuar com cultura regenerativa, adaptação e resiliência climática, dentro e fora do Brasil. A ideia é que os museus não sejam apenas guardiões da memória, mas também agentes ativos de transformação socioambiental.
As velas estão apontadas para um caminho de escala e profundidade: mais gente formada, mais instituições envolvidas e, principalmente, mais pessoas dentro dos museus despertando para seu papel regenerativo nos territórios onde atuam.
A história de quem você quer ver por aqui no próximo diário?
L: Isabel Valle, publisher da Bambual Editora.
Este foi o Diário de Bordo #3, com Lucimara Letelier.
Leia também os outros Diários de Bordo que já fizemos:
Espero que tenha gostado de conhecer um pouquinho da travessia da Lucimara.
Tem alguém ou algum projeto que gostaria de conhecer a história atravessada? Mande o nome aqui nos comentários ou no e-mail: ola.travessias@gmail.com
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