2# Diário de bordo: histórias de quem mudou a rota
Entrevista com Michel Bottan, fundador do Espaço-escola Desperto.
Diário de bordo é um quadro da Travessias - Revista e Comunidade Digital, em que entrevistamos pessoas que mudaram de rotas. A ideia é descobrir as travessias, com as dores e as delícias, daqueles que traçaram novos caminhos de vida, desafiaram o status quo e construíram (e seguem construindo) um viver mais regenerativo e com mais sentido.
Michel Bottan é o entrevistado da vez. Ele é ex-empreendedor em tecnologia, que encontrou na agrofloresta um novo propósito de vida. Como ele relembra:
“Larguei a cidade e fui plantar floresta”
Agora Michel é cofundador do Desperto, um espaço escola dedicado à regeneração do ser humano e do planeta. Fundador da startup OpenSyntropy, focada em consultoria, implantação e criação de tecnologias livres para a agrofloresta.
Atualmente, está desenvolvendo o Projeto Hahure (Habitats Humanos Regenerativos), que propõe que a Terra tenha direitos e que o território seja um bem comum, promovendo a bioregionalização e uma bioeconomia sustentável.
Também faz parte da equipe do ERC (Ecosystem Restoration Communities), trabalhando com tecnologia para conectar e apoiar uma rede global que promove a restauração de ecossistemas em cerca de 80 locais ao redor do mundo.
Ufa! Quanta coisa boa, né? Bora descobrir como ele chegou até aqui?
Leia a entrevista e se inspire com a travessia de Michel Bottan.
O que fazia e o que faz agora? Conte um pouco sobre a trajetória de transição ou transições que passou?
Michel Bottan: Eu era desenvolvedor de software e empreendedor em tecnologia, encontrei na agrofloresta um novo propósito de vida. Em 2015, durante minha busca por autonomia e liberdade, descobri a importância de cultivar meu próprio alimento, o que me levou ao trabalho de Ernst Gotsch e à Agricultura Sintrópica.
Tive a oportunidade única de participar de um curso intensivo de três meses com Ernst e seus primeiros alunos, onde aprendi teoria e prática, ajudando na restauração de uma área de brejo de 1 hectare.
Essa experiência me fez entender o meu papel no ecossistema e me levou a vender minha participação na empresa de tecnologia que empreendi. Em 2017, juntamente com minha companheira, Gabriela Besser, fundei o Desperto em Caçapava (SP), onde moramos, plantamos e recebemos pessoas em busca de aprendizados de regeneração em todos os níveis. Além disso, estou envolvido com outros projetos que vou falando durante o papo.
O que te fez mudar a rota? Existiu algum ponto de virada mais marcante?
M: Foi um processo e não um evento catártico. A meditação, sem dúvidas, me confrontou com quem eu era e a vida que levava.
O sentimento de ser escravo de um sistema que aliena mentes, corpos e vida me levou a buscar minha libertação dele — e plantar minha comida era a forma ativa de estar mais próximo da liberdade. Entendi que se todos nós temos autonomia, somos livres e com abundância, existe a paz. Pois há recursos para todos e um não precisa “pilhar” o outro.
Mas, detalhando a história, é mais ou menos o seguinte: Sou de Caçapava, interior de SP. Aos 18 anos, me mudei para São Paulo para trabalhar com desenvolvimento de sites, seguindo o roteiro que muitos acreditam ser a vida ideal: estudar, conseguir um emprego, alcançar sucesso profissional e estabilidade financeira.
Por mais de dez anos, segui esse caminho, alcançando ascensão na área de tecnologia, mas me distanciando de mim mesmo e da natureza. A vida urbana, com seu ritmo acelerado e a pressão do trabalho, estava me afastando das memórias de infância nas montanhas de São Luiz do Paraitinga. A vida urbana fluía no mundo artificial com entretenimentos e comida junkie. Mas, junto disso, me acompanhavam o sedentarismo, o sobrepeso e também o estresse pela pressão do trabalho e dos riscos de ser empreendedor.
Minha mãe sempre dizia que eu deveria buscar alguma prática espiritual, que isso poderia me auxiliar. Após algumas tentativas, encontrei no Budismo a prática do Zazen (meditação sentada) da escola Soto Zen no templo Bussinj. Meditei regularmente no templo Bussinji, onde aprendi a observar meus pensamentos, o que me levou a questionar minha vida e relacionamentos.
Em 2013, a empresa que havia iniciado com outros sócios estava prestes a decolar através de um investimento. Fomos pioneiros no Brasil em criar os softwares que monitoram a navegação das pessoas na Internet para depois mostrar aqueles banners com os produtos que elas estavam pesquisando, uma espécie de perseguição irritante até que a pessoa compre. Mas percebi que não via propósito naquilo. Eu já havia mudado um tanto, estava vegetariano, bem mais saudável, olhando para o negócio que havia criado e não vendo propósito algum naquilo. Não queria mais ajudar a aumentar ROI de vendas de tênis e perfume. Avisei meus sócios que deixaria a empresa e mergulhei no mundo dos negócios sociais.
Fiz uma imersão na aceleradora de negócios sociais Artemísia e procurei onde poderia me encaixar nesse mundo, em negócios democráticos, que hoje se assemelham as possibilidades de DAOs(Organizações Autônomas Descentralizadas), mas ainda não era o momento e precisei voltar para tecnologia, dentro do mercado convencional.
Mas, neste período em São Paulo, estava buscando uma vida mais leve e próxima da natureza. Comecei a pedalar para ir ao trabalho e decidi me mudar para uma casa com espaço para cultivar, mas eu não sabia praticamente nada. A Jabuticabeira comprada no CEAGESP quase morreu — a deixei em sol pleno e com pouca rega.
A conexão com a natureza me fez buscar uma imersão na meditação e na vida simples. Meus interesses por uma vida mais leve, focada no autocuidado e na alimentação, contrastavam com o ambiente workaholic em que eu estava. Me sentia um peixe fora d'água e percebi que precisava mudar.
Considerando me tornar monge budista, conversei com Handa Sensei, que me aconselhou a esperar. Essa pausa foi crucial, pois percebi que o caminho do leigo e do monge são semelhantes; não precisava ir a um templo para me aprofundar. Sentia falta da natureza, pois a meditação me fazia bem, mas eu queria uma conexão mais intensa.
Mais uma virada…
Foi então que comprei uma Ford Rural e me lancei na natureza. Viajei de São Paulo a Montevidéu, passando por lugares como o Petar, Cambará do Sul e Florianópolis, em um mês de pura contemplação ao som de Mark Knopfler. Ao voltar para São Paulo, toda a angústia acumulada se transformou em catarse. Decidi que queria viver próximo à natureza todos os dias e me sentir verdadeiramente vivo.
Deixei a casa alugada a poucos meses, fiz uma despedida de Sampa usando um hobby no estilo Big Lebowski. Me desfiz de quase tudo que eu tinha, eu queria estar leve e o que sobrou cabia na Rural, assim me mudei para dentro da floresta no Campeche em Floripa. Ali, redescobri o equilíbrio entre corpo e mente e passei a viver de forma mais alinhada com a natureza.
Apesar de estar em uma fase positiva e com uma jornada nômade pela frente, sentia uma inquietude por estar trabalhando em algo sem propósito. Naquele momento, trabalhava para uma startup britânica, desenvolvendo um sistema de EAD para traders. Sentia que estava vendendo minha alma para sobreviver nesse sistema. Já havia lido “A vida nos bosques”, de Henry Thoreau, e suas ideias ressoavam em mim: percebia que não precisava de muito para viver, mas ainda me sentia preso pela necessidade financeira para obter o essencial. Como Thoreau dizia: as necessidades básicas são abrigo, calor e alimento; o resto é desejo e ilusão.
A única maneira de alcançar uma liberdade real, independente de política ou economia, era plantar minha própria comida. Assim, mergulhei nos estudos de agricultura orgânica e agroecologia e, rapidamente, me interessei pela Agrofloresta e Agricultura Sintrópica. Essa nova abordagem me trouxe uma consciência ecológica que eu não tinha antes. Fico pensando sobre o que seria da nossa civilização se tivéssemos uma consciência ecológica tão madura quanto a dos indígenas.
Mais uma virada vinha pela frente…
Floripa estava maravilhosa, mas eu havia me comprometido em ser nômade e não criar raízes. Quase um ano depois, parti da Ilha da Magia rumo a Trancoso, na Bahia, acompanhando Gabriela Besser, uma empreendedora social que conheci e pela qual me apaixonei.
Na época, descobri um curso com Ernst Gotsch, que servia como seleção para uma formação de três meses com seus primeiros alunos, como Namastê e Fernando Rabelo. Estava no lugar certo na hora certa!
Liguei para meu chefe e declarei: "Vou me tornar agricultor!"
Ele ficou incrédulo, mandou um “WTF?”, mas minha decisão estava tomada.
A imersão foi intensa, mesclando teoria e prática. Aprendi fazendo. O trabalho era exaustivo, as bolhas estouravam nas mãos desacostumadas, mas a sensação de estar contribuindo para algo grandioso, voltando à floresta e ao metabolismo saudável da Pachamama, era revigorante. Regeneramos uma área de um hectare de brejo antropizado, uma experiência transformadora que solidificou meu papel como regenerador.
Após o curso, viajei por um mês com amigos para visitar agroflorestas e aplicar o que havia aprendido. Em 2017, consegui comprar a terra onde vivo hoje com a Gabi e onda construímos o Desperto.
Quais foram os desafios encontrados? Como passou por eles?
M: Não foi apenas uma transição, foram múltiplas transições simultâneas . A inexperiência para tudo que um viver rural demanda superou minhas expectativas.
Desde um grande incêndio que queimou quase todo o sítio no primeiro mês, até a abelhas, curto elétrico, gambás, ratos, ter de controlar leucenas. Fora a dificuldade para ter água - sem dúvida foi o mais difícil para nós - cavamos um poço cacimba que secou, captamos água de nascente que secou, até criarmos um poço artesiano com 140 metros de profundidade.
Foi preciso criar habilidades novas todos os dias para conseguir se estabelecer no território. Esse esforço de sustentação também evidencia a ilusão que é um viver individual no campo, que só se sustenta com muito sacrifício pessoal, muito dinheiro ou no que acredito hoje que é a comunidade.
Na agrofloresta eu segui o conselho do Henrique Sousa, "comece pequeno, pois quem começa grande, erra grande". Fiz a primeira área de Agrofloresta com horta e passei a vender hortaliças. Era muito difícil. Quem vende horta é herói e heroína.
É um trabalho imenso, praticamente todo dia, para uma renda muito baixa. Com a experiência que tenho hoje eu plantaria horta apenas para consumo próprio e para comercialização somente cultivos rústicos e de ciclo mais longo como mandioca, inhame, batata, banana, etc.
Com essa vivência percebi que a sustentabilidade financeira, a partir do trabalho no campo, não viria com facilidade. A horta era insustentável e as frutas levam anos para chegar. Então o Airbnb foi a renda mais fácil, mas como não estamos em nenhum destino turístico conhecido, ela só foi viável na alta demanda durante a pandemia, que para nós foi um período mais estável financeiramente.
Hoje estamos, aos poucos, integrando tudo: produção com mandioca, plantas medicinais, cursos e atividades do Desperto que usam os plantios como espaço ecopedagógico, além das consultorias e implantações.
É como se diz na permacultura: “não colocar todos os ovos numa cesta só”.
Nessa jornada de regeneração da Terra, precisei regenerar a mim mesmo. O trabalho físico intenso, a corda bamba da sustentabilidade financeira por anos foram minando minha energia e eu que cheguei com todo gás para regenerar, acabei adoecendo. No último ano, assim como precisei me regenerar de uma vida urbana, precisei me regenerar novamente do início de uma vida rural com um trabalho devocional a natureza, a vida planetária e ao futuro da humanidade.
Mas, desta vez, a regeneração estava mais difícil, até a meditação apenas não me trazia equilíbrio. Foi então que depois de plantar, eu me conectei as medicinas da floresta.
Como diz o Fritjof Capra:
"a regeneração é o segundo princípio da vida, é a capacidade de um sistema vivo de refazer suas estruturas e eu estou me refazendo".
Quais foram as coisas boas que encontrou pelo caminho graças a essa decisão?
M: A sabedoria de quem já habitava a terra, os camponeses, os anciões, os indígenas, povos tradicionais, os inovadores que ousam fazer diferente nas suas áreas como na bioconstrução, no uso de novas tecnologias para dar poder às organizações coletivas e autônomas. As medicinas da natureza… Precisei me desfazer de preconceitos e medos para experimentar e sentir as mensagens que elas me trazem e que me direcionam para a cura.
Qual leitura te ajudou a navegar pelo mar da transição?
M: O livro "Nada fazer, não ir a lugar algum", de Thich Nnhat Ham, me mostrou que eu estava na corrida de ratos.
O que você gostaria de ter escutado lá no início:
M: Não desperdice seu tempo de vida. Se permita viver o diferente. Vivencie mais na prática tudo que você irá viver depois, você vai precisar de novas habilidades para habitar um novo corpo, uma nova mente e um novo território.
Quais são as perspectivas e planos futuros?
M: Os ecossistemas estão possivelmente entrando num ciclo de retroalimentação de degeneração e morte. O viver urbano é acoplado ao clima seja pela eletricidade das hidroelétricas ou monoculturas que tem pouca resiliência climática, além de sistemas globais de mineração de recursos. Estes sistemas estão todos sob risco de colapsar.
Na minha percepção, não há mais tempo para adaptações a um sistema vivo que está se degenerando nesta velocidade e a mobilização política para mudar sistemas econômicos e de produção não acompanha a velocidade do desastre.
Paralela às iniciativas de mitigação, precisamos lançar os botes salva-vidas.
É preciso criar a estrutura de novos sistemas que tenham resiliência para um futuro próximo de caos climático e colapso dos sistemas que suportam o viver artificial das cidades.
Estou direcionando minha energia para a criação de territórios no Projeto Hahure. Quero desenhar territórios de bem-viver, com abundância de alimentos e recursos, com os direitos da Terra assegurados e uma comunidade bioreginal que tenha clareza para a emergência de uma nova e ancestral cultura.
A história de quem você quer ver por aqui no próximo diário?
M: Paulo Saloni, artista plástico e bioconstrutor que mostrou como é possível conquistar autonomia na habitação.
Este foi o Diário de Bordo #2, com Michel Bottan. Quer acompanhar mais de perto seus projetos e agenda de cursos e imersões? Ele está no @michel.agrofloresta
Você pode ler o Diário de Bordo #1, com Ferando Cespe, da Casa Naara, aqui:
Espero que tenha gostado de conhecer um pouquinho da travessia do Michel.
Tem alguém ou algum projeto que gostaria de conhecer a história atravessada? Mande o nome aqui nos comentários ou no e-mail: ola.travessias@gmail.com
⛵ Sobre a Travessias
A Travessias começou como newsletter da Bambual Editora, mas agora é revista e comunidade digital feira por (e para) quem está em transição.
Travessias celebra o tempo da calma, das trocas reais e que não dependem de um algoritmo. Os saberes aqui compartilhados são transdisciplinares e indisciplinares. Mente, Corpo e Alma. Tudo se entrelaça, se mistura, se dissolve. Assim como na vida: humanos e mais que humanos entrelaçados e compartilhando a faísca que nos mantêm vivos.
É só uma questão de nos relembrarmos de tudo isso… Vamos atravessar?
⛵ Por que se inscrever e fazer parte?
Ao fazer parte, além dos conteúdos em semanais, você também terá acesso a experiências e descontos exclusivos. Veja alguns bônus:
35% de desconto no catálogo do site da Bambual Editora;
Revista Travessias impressa (edição 1);
Encontro online com a comunidade;
Espaço para publicar seu relato de transição;
Outras surpresas para apoiar sua transição.
Mude sua assinatura para a versão paga e faça parte da comunidade automaticamente: