Quem tem medo da folha em branco?
Brincadeiras para desbloqueios criativos | Travessia #10
“Ando tendo medo da folha em branco, as palavras estão me escapando”.
Ouvi essa confissão de uma amiga que sempre escreveu muito. Escutei aquelas palavras e pensei: “É claro. Está sobrecarregada, sem férias há anos, processando uma série de acontecimentos, impossível dar espaço a criatividade”.
Pensei, mas não falei nada. Afinal, bloqueios criativos podem acontecer em fases maravilhosas da vida também. Ela seguiu falando sobre essa angústia e me pediu sugestões de técnicas para trazer de volta sua criatividade e vontade de escrever.
Dei risada. Mal sabia ela que eu também estava em busca dessas duas. Falei que iria refletir sobre esse assunto e cá estou. Desde então, fiquei matutando que esse seria um bom tema para investigar na coluna do mês, já que o processo criativo é um processo cíclico e nada linear. Ironicamente (ou não), também me encontrava em um estado bloqueado sobre o recorte que traria aqui nessa coluna. Mas quando a ficha caiu e decidi pensar sobre o que desbloquearia nossa criatividade, logo percebi que não seria nada que viesse acompanhada da palavra técnica na frente.
Para sair do medo do papel em branco precisamos nos levar menos a sério. Desconfio que correr atrás da palavra como quem tem uma meta a cumprir não afasta o medo, pelo contrário, gera ansiedade.
Como trouxe na coluna anterior “Eu não sou um robô”, a criação de coisas novas é inimiga da robotização e da produtividade. Por isso, eu já desconfiava que o caminho era pela descontração, mas ainda não sabia como acessar esse estado relaxado. Foi durante o último encontro do Grupo de Leitura do livro O Mundo Desdobrável- Ensaios para depois do fim, de Carola Saavedra, que a segunda grande ficha caiu: O caminho poderia ser pela brincadeira.
Em um dos ensaios que estávamos lendo, Carola traz a cena em que sua filha sugere uma brincadeira de interpretações e conta como acompanhar a infância dela tem servido para que repense os seus conceitos sobre o que é arte e literatura.
Esse é um livro que questiona o papel da literatura em um mundo colapsando. Não é exatamente sobre processo criativo, mas a autora traz muitos exemplos da sua própria busca por se reinventar. Durante a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), ela falou algumas vezes sobre a necessidade de ir além da técnica, se permitir fabular, escrever com mais vozes, se deixar atravessar.
Vale ressaltar que quando falamos sobre pensar criativamente, podemos pensar, também, sobre criar outros formatos de existência e interação. Nestes tempos de diversas crises sobrepostas, é preciso ir além de uma compreensão intelectual dos fatos científicos sobre a insustentabilidade do nosso modo de vida. Está na hora de abordar o problema com nossa imaginação e criar espaços para que outros modelos floresçam.
Então, pensando em diversos autores do paradigma regenerativo e relembrando as palavras de Carola, percebi que o que estava me faltando era mesmo brincar.
Brincar com as palavras, com o corpo, com os sentidos e possibilidades. Decidi que no dia seguinte sairia para brincar com a Serena Odara, minha vira-lata de dois anos, e levaria a caderneta debaixo do braço, caso alguma ideia de brincadeira-desbloqueadora-de-sentidos-e-criatividade aparecesse.
Acho que deu certo. As ideias sempre chegam mais fácil quando estou em movimento e o vento toca meu rosto.
Deixo aqui algumas delas para inspirar o seu mês de dezembro.
Brincadeiras para desbloqueio criativos:
Poemas caminhados:
Essa é uma sugestão que a própria Carola traz no livro. Baseada em um ritual aborígene, em que as pessoas da tribo acordam e vão caminhar contando os sonhos que tiveram durante a noite, ela passou a fazer uma longa caminhada todos os dias pela manhã, junto de um gravador. “A medida que caminho, gravo as palavras que me vêm à mente, quase sempre aleatórias, mas que, como num sonho, giram em torno de algum tema.”
Diálogos com poetas:
A ideia é conversar com uma poeta da sua estante. Pegue aquele livro que você adora, folheie, leia algumas páginas e escreva uma carta (ou um poema, crônica, conto) conversando com quem escreveu aquele livro. O resultado pode ser surpreendente.
*Lembre-se de não se levar muito a sério!Encontro com o artista:
Essa é clássica! A brincadeira é sugerida pela Julia Cameron, autora do livro “O Caminho do Artista” (Ed. Sextante). Cameron defende que existe um(a) artista interior dentro de cada pessoa. Mas é preciso nutrir esse artista com atividades verdadeiramente prazerosas. Por isso, a sugestão é que toda semana você reserve, pelo menos, 2 horas de encontro com seu artista. Só você e ela (e). Sem celular, cachorro ou companhia. Nada mais é do que se nutrir de atividades lúdicas e gostosas. Parece simples e bobo, mas, convenhamos, em um mundo que supervaloriza a produtividade, parar para se nutrir com coisas prazerosas, chega a ser uma ação transgressora.
Contemplação das insignificâncias:
Essa é inspirada no grande poeta das pequenezas e insignificâncias da vida, Manoel de Barros. Experimente contemplar, por um momento, alguma planta da sua casa, as interações que acontecem nela ou algum inseto que coabita o espaço com você. Depois de simplesmente prestar atenção aos mínimos movimentos, você pode encontrar a voz desse inseto ou a mensagem que ele quer escrever. Jogue-as no papel.
Mexendo o corpo, sentindo a música:
Sempre me lembro da experiência que tive ao escrever a travessia “Meu corpo, minha anarquia”, em que me propus abrir espaços corporais para que o texto fluísse. Colocar uma música, dançar, sentir a melodia, pode ser um gatilho fácil para que os rabiscos comecem a tomar forma. Coincidência (ou não), no exato momento em que editava esse texto recebi uma mensagem no grupo da pós de Escritas Performáticas. Era a escritora Marcelle Louback compartilhando a playlist que inspirou a escrita de seu último livro "Desvios” (Patuá). Deixo aqui para que você também possa se inspirar: escute aqui.
Respeite o bloqueio. Esvazie-se:
Tem dias (ou fases) que a gente não quer brincar. Que as palavras simplesmente não vem. Nem os desenhos. Nem pinturas. Nem nada. Saber parar e ficar na inação é parte fundamental de quem sabe viver com respeito aos ciclos. A pausa, o esvaziamento, o silêncio fazem parte do processo. Confie. “Tenha paciência com o não-resolvido, ame as perguntas e viva tudo”, já disse Rainer Maria Rilke em “Cartas a um jovem poeta” (Ed. Planeta).
"Talvez observar uma criança brincando possa nos oferecer respostas muito mais interessantes do que os livros, a teoria e a própria razão. Talvez brincadeira e arte não sejam movimentos tão distantes um do outro- eu suspeito que são a mesma coisa, e que aquilo que chamamos arte e literatura nada mais são do que o brincar dos adultos."
-Carola Saavedra
Me conta se colocou alguma dessas brincadeiras em prática e qual foi o resultado delas? É só escrever um comentário:
💠Como seria a voz de um fungo passeando por um cajado?
Em "cajadelar", Raquel Taffari investiga as existências enredadas a partir do protagonismo fúngico que habita um cajado. Neste encontro em êxodo, a intra-ação entre animal humano e fungo é atravessada por diferentes encantamentos e questões. Nada se responde. Tudo se refaz na metamorfose de cada passo.
💠Ep. Bloqueio Criativo, no podcast: Gostosas Também choram
Neste episódio Lela Brandão conta sobre o “medo do papel em branco” que ela começou a ter depois de um burnout e sobre como ter implementado o hábito de caminhar todos os dias a ajudou.
fluido - direto- conciso e prático !!! Abraços paz amor e luz