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Escrever sobre o corpo e regeneração sentada em uma cadeira não me parecia fazer sentido. Amassei o rascunho começado no papel, fechei o computador e me levantei.
Pedi que meu corpo me respondesse: qual o caminho para a transição?
Abri espaço na sala para abrir espaço dentro de mim.
Era preciso criar espaços internos para escrever sobre o corpo - para escrever com o corpo. Dancei ao som de Obatalá do grupo Metá Metá.
E eu convido você a abrir esse espaço também, antes de continuar a leitura, se puder, claro. Para ouvir, é só clicar aqui.
O corpo como espaço de ampliação de consciência
Foi com os olhos fechados e em movimento que pude ouvir o corpo me pedindo espaço e respiração consciente para adentrar esse assunto. “Sai do cabeção”, ele me disse.
E então eu me lembrei que a transição para um modo de viver mais regenerativo nos pede a cura da visão cartesiana, que separa mente e corpo, rumo a visão sistêmica, que vê tudo interligado: corpo, mente e alma.
Não se trata de deixar de racionalizar tudo, mas sim sobre diminuir o ritmo mental e perceber que não é só a mente que pode ter respostas para alguma pergunta. Lembrei de Daniel Wahl, autor de Design de Culturas Regenerativas, falando que não poderíamos mais resolver problemas complexos com soluções lineares e simplistas.
O corpo pode ser um caminho que nos ajuda a sair desse padrão estritamente racional. Ao nos reconectarmos com ele, podemos ir além das nossas capacidades de pensar o mundo e experimentá-lo com as sensações percebidas através dos sons, das texturas, dos aromas.
Sabe aquela resposta que só veio depois de uma caminhada? Ou aquela vontade repentina de colocar o pé na areia? Ou aquela sensação que te fez mudar algum hábito alimentar? Então…era o corpo ganhando espaço para falar. O corpo, portanto, é um caminho certeiro para nos conectarmos com a intuição. E dar espaço para a intuição é um dos caminhos para começar a viver uma vida menos robotizada e que segue padrões impostos há décadas. Assim podemos ganhar um viver com mais sentido profundo.
Ao ter mais consciência, também passamos a conseguir traduzir a linguagem do corpo e, com isso, podemos ter mais autonomia sobre como queremos seguir. E autonomia é uma palavra chave para a construção de um novo mundo. Quando ganhamos consciência e a tal da autonomia, podemos perceber que dores físicas podem estar falando sobre dores emocionais, por exemplo. Val Teixeira, psicóloga e autora do capítulo “Útero”, presente no livro Meu Corpo é Uma Festa, fala sobre esse tema e sugere um exercício poderoso para fazer a reconexão e as pazes com o corpo. Você pode ter um gostinho dessa prática aqui.
O corpo como espaço para sentir
“É preciso um corpo forte, vibrante, alegre e consciente de si para mudar as coisas” - meu corpo continuava me provocando.
Me lembrei de uma pergunta que ouvi em um banheiro feminino:
“Você tem feito exercícios físicos para evitar suas dores ou para sentir prazer?”
Era uma amiga provocando a outra a encontrar um exercício que lhe desse real deleite, ao invés de algo apenas para fortalecer os joelhos e evitar a dor na lombar.
Aquilo caiu como uma bomba pra mim e eu quase me intrometi na conversa delas. E, talvez, se você já tiver passado dos trinta, também cairá para você.
A história comum sobre a busca por exercícios físicos é mais ou menos assim: Quando crianças, nos divertimos nas aulas de educação física ou dança. Na adolescência, começamos a buscar por algum movimento que possa mudar o nosso próprio corpo e deixá-los sarados, dentro de um padrão específico de beleza. Depois pode vir a aceitação, alguns passam a não procurar mais por tantas mudanças estéticas, mas, para muitos, logo vem a fase de procurar exercícios depois de uma recomendação médica, com o objetivo - justo - de não sentir alguma dor.
Mas um corpo que só não sente dor é muito pouco perto do que merecemos. Nós precisamos – e merecemos! – sentir prazer.
Me lembrei da história de uma conhecida que havia feito um tratamento para o vaginismo (uma disfunção sexual caracterizada por uma série de contrações involuntárias da vagina, que acabam por causar muita dor e desconforto durante as relações sexuais).
O tratamento passava por exercícios acompanhados por uma fisioterapeuta pélvica, que sempre a alertava: "O foco desse tratamento é para que você possa não sentir mais dor, apagando, aos poucos, as 'memórias de dores' gravadas no seu corpo. Mas isso não vai lhe garantir o prazer.”
Ela, claro, desejava muito parar de sentir dor, mas achava isso pouco. Depois de encerrado o tratamento e de conseguir ter relações sexuais sem dor, ela conseguiu começar sua busca por "memórias de prazer” que renovaram com ainda mais sucesso as tais “memórias de dor”.
Precisamos nos relembrar que o nosso corpo pode ser um grande veículo para SENTIR. Não apenas um meio para fazer coisas do dia a dia. E isso, não necessariamente, passa apenas pelas relações sexuais. É com o corpo que podemos sentir prazer quando mergulhamos no mar, quando subimos uma montanha, quando sentimos o sol tocando nossa pele, quando fazemos uma aula de biodanza ou depois de uma meditação.
O corpo como espaço para revoluções internas e externas
“Me sinta, não me rotule, me liberte”. Meu corpo seguia falando…
Ter autonomia para ouvir, cuidar e sentir o corpo que habitamos pode parecer simples, mas nossos corpos têm sido aprisionados e apropriados pelo patriarcado e pelo capitalismo – os corpos das mulheres, dos homens e de pessoas não binárias.
Os corpos ditos femininos são historicamente mais violentados e oprimidos e, se fizermos um recorte racial, isso se agrava severamente para corpos negros, mas engana-se quem pensa que os corpos ditos masculinos não sofrem com esse sistema (que ao primeiro olhar os beneficia).
Como escreve Hugo Dubeux em seu livro de poesia “Existe um homem selvagem”: Me exilam de natureza, de território, e também de mim. No mundo - patriarcado - que nos dita, somos aprisionados em nós mesmos. O orgasmo, e o amor, nos flutuam por ventos de liberdade.
Como nos libertar dessas prisões criadas há séculos?
Há alguns anos surgiu o movimento “Meu Corpo, Minhas Regras", uma espécie de ‘grito de guerra’ de mulheres por todo o mundo. Mas, se me permitem, gostaria de atualizar esse grito de paz para algo como “Meu corpo, minha anarquia!” e que ele valha para todos os corpos sencientes do planeta Terra. Afinal, “eu só serei livre quando a Terra também for”.
Esse meu grito veio como um mantra diário para mim, depois que ouvi a estrofe "Seu corpo, tua anarquia” no poema musicado de título Balaio, de Paulo Novaes e Pedro Blanco. Dei um sorriso imenso e senti o corpo relaxar quando o ouvi pela primeira vez. É que já colocaram regras demais em nossos corpos. Por isso, eu desejo que nossos corpos possam existir sem regras, livres, imensos, criando, sentindo, sendo... Apenas sendo como são.
Pensar sobre todas essas nuances me fez perceber que ter um corpo que é ouvido, que sente prazer e que é livre é um dos atos mais revolucionários que posso fazer hoje.
Percebi isso racionalmente, ao fazer a pesquisa para este texto, mas empiricamente com meu próprio corpo, naquela dança que me permiti dançar antes de começar qualquer coisa.
O caminho para ser esse corpo livre e pulsante no mundo é longo, mas pode ficar mais interessante se for feito coletivamente. Quando eu me permito, eu deixo que os corpos a minha volta possam ser livres também. Então aqui fica um convite: vamos abrir espaços para sermos esses corpos que festejam, para além do carnaval?
Eu ouvi um sim? 🙃
"A Igreja diz: o corpo é uma culpa.
A Ciência diz: o corpo é uma máquina.
A publicidade diz: o corpo é um negócio.
E o corpo diz: eu sou uma festa."
-Eduardo Galeano
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→ Lorena Cabnal, importante liderança indígena maya-xinka, defende a necessidade de corpos felizes para a luta anti-patriarcal:
→ "Peço desculpas ao meu corpo”. Um texto corajoso escrito por Mariana Belmonte no Portal Geledés.
→ O que o corpo tem a nos dizer? Esse é o tema do último episódio do podcast Trocas Preciosas, um podcast psicoeducativo, feito pela Priscila Almeida e Adriana Oliveira. Nessa conversa (pra lá de preciosa) elas batem um papo com Andressa Sampaio, professora de yoga e apreciadora da vida, corpos e processos:
→ Você desenvolve conhecimento mental ou sabedoria corporal? Provocacão interessante do @espiraldavida8:
→ A comunicadora Mirian Bottan começou o #projetoVIDÃO há alguns anos e vem trazendo importantes reflexões sobre transtornos alimentares, comportamentos compulsivos e saúde mental. Esse vídeo de sua autoria é uma declaração de amor a todos os corpos:
→ Não precisa dizer muita coisa, né? Confia.
→ Poema da carta Bailarina Cósmica, interpretado por Jennifer Perroni, autora do Oráculo da Mulher Selvagem:
"Continue dançando até que seja apenas Deus, a dança e você no universo.”
Como diria Gal, tudo é divino, tudo é maravilhoso…Mas é preciso atenção ao dobrar as esquinas. Um resumo de notícias que precisamos nos atentar e agir:
→ Até quando a menstruação vai ser um tabu no mundo?
O mundo não precisa de mais produtos ou negócios que não impactem positivamente o planeta. Muito pelo contrário, estamos precisando de negócios que resolvam os problemas que a sociedade causou até aqui. A boa notícia? É que já tem uma porção deles surgindo e atuando. Trago aqui um apanhado para que cada um possa se inspirar e apoiar essas novas formas de estar no mundo.
→ A Trama Livre é uma marca de panos subversivos, produzidos com matéria-prima reciclada pela indústria brasileira e desenvolvida manualmente por uma família empreendedora. Por lá, os panos não são somente para enxugar louças e mãos, mas principalmente para representar e empoderar mulheres na cozinha - lugar que o patriarcado sempre as colocou para explorar e oprimir.
É difícil escolher apenas um objeto por lá, mas olha só esse lugar de mesa SUPER TEMÁTICO com essa a travessia do mês <3:
Sou do time que lê muitos livros ao mesmo tempo e, vez em sempre, abro um livro já lido só para ver alguma parte que grifei no passado. Trago aqui um pouco daquilo que grifei, pois existem trechos que são faíscas e podem despertar uma grande combustão.
quero a revolução
de homens sinceros
com o coração
-Hugo Dubeux (Existe um Homem Selvagem)
Os trechos acima são um esquenta para o quarto episódio do podcast #Li, Grifei, Compartilhei, que sai nas próximas semanas.
Que tal participar desse episódio enviando um áudio com trecho de alguma leitura que lembrou durante essa travessia? É só enviar para o e-mail: ola.travessia@gmail.com.
E enquanto ele não vem, que tal escutar os outros episódios aqui?
Todo mês uma playlist que inspirou a escrita dessa newsletter.
Para deixar o corpo livre de amarras e aberto ao prazer de estar vivo:
Essa é uma pergunta que costumamos fazer ao fim das reuniões da Bambual Editora. É uma ferramenta utilizada pela Teoria U e outros métodos de gestão de pessoas e projetos e se chama check out, ou no bom português: saideira!. É uma boa ferramenta para fazer consigo mesmo e checar como você se sente em relação a variadas situações: encontros, leituras, andanças, trabalhos…
Para encerrarmos esse caminho, me conta: como este assunto chegou até você? Há algo querendo emergir?
Quero te encorajar a escrever e compartilhar suas reflexões por aqui também. Use o botão abaixo para criar sua conta no Substack e conectar sua publicação com travessias
Você também pode compartilhar suas percepções e como essa travessia reverberou em você aqui nos comentários. Assim podemos criar novos diálogos sobre o tema. (Para comentar é só ir até o final do texto).
Essa foi a travessia de março de 2023.
Nas próximas semanas você recebe na sua caixa de entrada: o próximo #TeIndicoUmLivro e o próximo #Li,Grifei,Compartilhei. (Quer participar desse episódio de podcast? Mande um áudio com a leitura de um trecho de livro que você lembrou depois de ter feito essa travessia!)
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travessias é uma newsletter interativa idealizada por Bruna Próspero Dani e Isabel Valle com realização da Bambual Editora, que é dedicada a publicação de livros e projetos para a transição global.