#ParaLerNaRede - Cultivar espaços para olhar as próprias incoerências
Luiz Eduardo Alcantara, do Brotherhood Brasil, compartilha com a Travessias uma reflexão sobre incoerências e masculinidades
Olá! Antes de começar o texto de hoje, trouxemos uma sugestão de trilha sonora para embalar a leitura dominical:
O texto que segue abaixo é uma parceria entre Luiz Eduardo e Bambual Editora e faz parte do #ParaLerNaRede, um texto exclusivo por bimestre escrito por uma pessoa convidada especial.
Acredito que abraçar nossas incoerências seja uma atitude fundamental para qualquer caminho real de transformação. Esse foi um dos motivos que me fez aceitar na hora o convite para participar deste ciclo de Travessias. Não nascemos sabendo tudo e somos expostos desde a infância a ideias e comportamentos de uma sociedade estruturalmente machista, racista, lgbtfóbica, entre outros preconceitos. Muito do que absorvemos e aprendemos não irá necessariamente contribuir para o nosso bem-estar, tampouco das pessoas e do ambiente ao nosso redor. Outro motivo que me fez escutar uma voz interna falando “você tem que escrever esse texto” é porque me pego muitas vezes sendo incoerente.
Apesar da coerência ser um valor pessoal e que busco estabelecer nas minhas relações, eu falho miseravelmente algumas vezes, ou muitas vezes. E como me frustra me perceber incoerente. Como me angustia me perceber agindo diferente do que eu desejaria fazer.
Escrever esse texto é um convite a olhar para a minha história e, de certa forma, com uma ênfase nas partes menos bonitas dela. Afinal, é sempre mais agradável falar dos momentos que nos orgulhamos, das nossas coerências internas.
Mas, cá entre nós, o mundo precisa de histórias reais e sem recortes. E histórias reais não são compostas de heróis e mocinhos, mas sim de humanos complexos.
Por isso, convido você a ler este texto com o peito aberto, olhando com empatia para sua própria história. Como a coluna sugere, se puder deitar numa rede como eu estou fazendo, melhor ainda.
Eu sou um homem cis, hétero e branco e, como muitos, ou quase todos, na minha infância e adolescência, não fui incentivado e nem aprendi a demonstrar minha vulnerabilidade e olhar para dentro e lidar adequadamente com as minhas emoções. Ainda que eu discordasse de muitos dos comportamentos e falas preconceituosas que eu observava no meu pai e em outros homens mais velhos da minha família ou com quem eu convivia, não tive uma referência masculina que me mostrasse uma forma diferente de ser homem.
Conforme fui crescendo e ganhando autonomia, passei a muitas vezes utilizar as referências masculinas que tive como exemplos negativos. Se era assim que eles se comportavam, eu tinha que agir diferente. Então experimentei e busquei aprender com leituras e conversas com amizades, especialmente minhas amigas. Passei a assumir a responsabilidade de fazer diferente e a reconhecer que o meu pai, e outros homens de sua geração, faziam o melhor que podiam diante do que receberam de seus pais. Cabia a mim receber o que ele podia dar e seguir em frente trilhando um caminho que fosse mais coerente com o que eu acredito e com a forma como desejo viver em sociedade.
No entanto, aprender hábitos novos e abrir mão de privilégios não é tarefa fácil. Como disse a Manuela Barroso, entrevistada do primeiro texto desta série, quando desejamos mudar algo muito profundo na forma como agimos no mundo, é normal que exista uma estrutura interna que opte por um repertório já conhecido e aceito pelos condicionamentos sociais.
Quando passei a questionar o padrão de masculinidade que está posto e a buscar conscientemente não o reproduzir, fui tomando conta do quanto seria uma tarefa desafiadora que não sei se serei capaz de realizar completamente.
Em vários anos escutando e aprendendo com outros homens em rodas, imersões e eventos conduzidos pelo Brotherhood Brasil, pude acompanhar a dificuldade de outros homens que também estavam tentando lidar com suas incoerências.
Muitos desejando o sucesso de suas companheiras, mas enfrentando dificuldades emocionais quando ela passa a ganhar mais dinheiro, outros querendo uma vida sexual mais significativa, mas ainda tendo a pornografia como referência.
Ouvi afirmações de que queriam uma sociedade mais equânime entre homens e mulheres, que queriam não ser racistas tampouco lgbtfóbicos, mas não buscavam ativamente aprender e estudar essas questões. Outros reconheciam a responsabilidade maior dos homens pela emergência climática, seja pelas posições de liderança que ocupam, seja pela maior resistência em adotar comportamentos sustentáveis, mas cediam ao conforto de suas situações e hábitos já conhecidos.
Apesar de saber da urgência de que esses comportamentos mudem, sei também da dificuldade que é de fato se transformar.
Rotineiramente me reúno com outros homens em rodas de partilhas em que o objetivo principal é criar um espaço em que possamos ser vulneráveis, falarmos sobre temas que muitas vezes não conversamos com outras pessoas, nem mesmo com nossos amigos, e descobrirmos outras formas de nos relacionarmos entre homens. Essa prática que já mantenho há mais de seis anos ainda não é suficiente para que eu não me pegue muitas vezes em meu relacionamento com minha companheira não lidando bem com as minhas emoções.
Foram muitos mais anos acreditando que devia suprimir o que sentia, não expressando tristeza nem medo. Alegria só de maneira contida e em momentos adequados. Como muitos homens, a única emoção que me sentia mais autorizado a expressar é a raiva, que se revelava quando internamente o copo já estava cheio e uma pequena situação era suficiente para se tornar a gota que fazia a raiva se espraiar. Infelizmente, ainda me pego caindo nesse padrão e dificultando a comunicação que desejo ter em minha relação afetiva.
Nesses momentos, um trecho do texto da
, que também saiu na travessia #8, caiu como uma luva para mim. Quando ela diz que uma das ideias principais da Comunicação Não Violenta (CNV) de que cada pessoa é responsável pelas próprias emoções pode ser distorcida para ausência de coerência e cuidado com o sentimento das outras pessoas. Eu, mesmo sendo também um grande entusiasta da CNV, tendo estudado sobre, praticado e compartilhado, percebo como ainda escorrego nos momentos de raiva e transfiro a responsabilidade para a outra pessoa de forma a, muitas vezes, não querer reconhecer um erro.A dificuldade de lidar com as próprias emoções e manifestar cuidado em nossas relações é um traço comum a muitos homens, assim como outras atitudes incoerentes que podemos ter no nosso caminho de expandir as possibilidades de expressão da masculinidade. Não quero com isso passar pano para atitudes equivocadas ou até mesmo violentas, tampouco fazer com que caiamos na culpa por ainda agirmos de forma que não gostaríamos.
Acredito que abraçar as nossas incoerências esteja relacionado com um sincero arrependimento e um compromisso firme de agir diferente e alinhado com nossos valores.
Hoje, quando sinto raiva, tento me lembrar que não quero acrescentar agressividade a este mundo já tão violento e busco não deixar que a raiva guie as minhas ações. Quando não sou capaz de agir como acho que deveria, pelo menos busco reconhecer o erro e me arrepender sinceramente, sem culpa, mas ficando com a crueza da minha vulnerabilidade por ter errado e a vontade determinada de não repetir a atitude. Assim, tento ir aumentando as minhas formas de expressar cuidado nas minhas relações e ações no mundo, atitude que acredito ser fundamental para nós homens desenvolvermos.
Ainda levará um tempo para abandonarmos o modelo de masculinidade que muitos homens aprenderam a desempenhar. Pegando carona no que o Felipe Cunha pontuou no seu texto desta série, penso que não devemos passar para um novo modelo fechado, mas sim para que seja possível diversas expressões das masculinidades, possibilitando a diversidade de experiências das pessoas que se identificam como homens. Sem um modelo fixo do que é ser homem para seguir, muitos homens podem se sentir perdidos, mas é abraçando nossas incoerências e vulnerabilidades, e assumindo nossa responsabilidade com a transformação que poderemos ir descobrindo como podemos como homens contribuir para a solução dos problemas atuais.
Esse texto é uma parceria entre Luiz Eduardo e Bambual Editora e faz parte do #ParaLerNaRede, um texto exclusivo por bimestre escrito por uma pessoa convidada especial.
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