Quanto do que atribuímos à ação de cuidar mora no cerne das questões entre os gêneros?
Vivemos em um tempo onde o ‘cuidado’ e ‘cuidar’ são considerados ‘características' e responsabilidades femininas, das mulheres, além de receber diferentes compreensões e diferente valor, dependendo do contexto e da forma como, e onde, se expressa.
Existem muitas evidências de que a cooperação e o cuidado, e não a competição, é que são os principais responsáveis por nossa evolução. Uma das mais emblemáticas, ao meu ver, é a famosa resposta da antropóloga Margaret Mead, a respeito do que ela considerava ser o primeiro sinal de civilização em uma cultura:
Segundo ela, a descoberta mais importante, neste sentido, foi a de um fêmur fraturado e cicatrizado, de 15.000 anos. O osso mais longo do corpo leva cerca de seis semanas para regenerar-se, ou seja, para que isso acontecesse, alguém teria cuidado daquela pessoa que fraturou o fêmur. Segundo Mead, é nesse ponto que nos tornamos civilizados: quando cuidamos do outro.
Como podemos ler no texto da querida
, o cuidado não é uma característica exclusivamente humana, e sim da vida em nosso planeta – um grande corpo de afetos.Porém, algo aconteceu que mudou radicalmente nossa percepção do mundo, a ponto de aceitarmos teorias da evolução como sendo fruto da competição; considerarmos civilizadas as sociedades desiguais e violentas; e primitivas, as sociedades orientadas pela parceria. Glorificamos o sucesso a qualquer custo, desigualdades extremas e violências inadmissíveis...
Onde tudo isso começou?
Quando sentei para escrever essa coluna, cujo briefing havia sido escrever sobre o cuidado nas nossas relações com foco nas questões de gênero (e sabendo que seria publicado em março, no mês que enaltecemos a luta feminista por nossos direitos), eu estava montando uma aula sobre economia do cuidado, e, muito inspirada por todo esse tema, escolhi trazer para cá muitas das informações que compartilho em meus cursos. E o texto acabou ficando longo… Vamos lá.
Cada vez mais, temos notícias de histórias apagadas pelo tempo, reveladas por arqueólogos e antropólogos que encontram vestígios de outras formas de nos organizarmos em sociedade, nos oferecendo vislumbres sobre como muitos povos viviam antes do patriarcado se impor às outras culturas.
Conhecemos diferentes teorias para o surgimento desse sistema de crenças androcrático, que, para poder existir, promoveu uma cultura sexista e misógina, descrita e presente na Bíblia, no Alcorão, na Torá, nas leis e costumes na Ásia, Egito, Grécia e Roma antigas, e até hoje presente no cotidiano das mulheres e meninas, ao longo de milênios.
Riane Eisler, em “O cálice e a espada”, nos presenteia com seus estudos sobre como teria acontecido essa transição de sociedades Matrísticas (do Cuidado/Parceria) para sociedades Patriarcais (Controle/Dominação).
A cultura do cuidado, está intimamente relacionada a cultura da abundância, “tem para todo mundo”. Assim como a cultura da dominação está intimamente relacionada à cultura da escassez, “salve-se quem puder, a qualquer custo”.
Há mais de 5 mil anos e, infelizmente, até hoje, sociedades que viviam em harmonia em seus territórios, com seus modos de vida, orientados pelos valores de cuidado e respeito, sofreram invasões de povos conquistadores. No caso da Europa antiga, esses invasores, guerreiros indo-europeus, viriam de contextos de escassez, sofrendo pressões ambientais e competição por recursos. A escassez seria responsável por criar uma cultura de dominação e controle, a falta geraria disputa e conflito – “vence o mais forte” –, a falta levaria à busca de outras paisagens, a movimentos migratórios. Dando origem às estruturas sociais contemporâneas. Estruturas essas que impuseram o temor sobre o amor. - O que faz sentido sob uma perspectiva, porém, paradoxalmente, sabemos que populações em situação de vulnerabilidade praticam muita cooperação, parceria. O que deixa no ar a pergunta: onde nasce a violência?
Como se não bastasse, com a mercantilização, promovemos o patriarcado capitalista, que, para se instalar, precisou transformar completamente o valor que atribuímos a cada coisa, coisificando e monetizando absolutamente tudo. Além de supervalorizar algumas e desvalorizar completamente outras.
Como diz Marina Silva:
“Foi o momento em que o ideal do ser foi capturado pelo ideal do ter… Sendo que não há limites para ser, mas há limites para ter”
Assim, vivemos nesse modelo, que supervaloriza a produção e desvaloriza a reprodução; que valoriza o trabalho realizado, mas não o trabalhador realizador; onde tudo que vem do mundo natural é expropriado, consumido e poluído; com os custos externalizados e não mensurados, e onde a vida e o trabalho de gerar e cuidar da vida é desvalorizado e não valorado.
Nosso sistema econômico modela e é reflexo de nossa visão de mundo.
Quando o capitalismo chega, em comunidades antes igualitárias (cultura de cooperação), leva junto a desigualdade e a competição, a divisão e a violência – ao promover oportunidade de riqueza para um, promove oportunidade de pobreza para outro.
Silvia Federici, em suas obras, compartilha, como esse momento de transformação de nosso modelo econômico coincidiu com a intensificação da misoginia, violência e morte de mulheres – que lutavam para manter seus direitos e saberes, sua liberdade de controlar seus corpos e gestações, e que foram (e ainda são) perseguidas pela igreja, pelo estado e pela sociedade. Silvia também mostra que, no sistema feudal, as mulheres tinham mais autonomia, e que a hierarquia de gênero – diferentemente da atual – não era mediada por dinheiro.
Quando o dinheiro passa a ser o principal marcador, sofremos a mercantilização, que reforça a lógica de uma desigualdade artificial. Afinal, qual trabalho vale mais?
Podemos dizer que toda a humanidade está separada em duas realidades corporais, porém, não são as distinções físicas que determinam comportamentos, e sim a cultura onde estão inseridas, como podemos ver nos estudos de Mead em Sexo e Temperamento.
Ao mesmo tempo, ao longo dos milênios de patriarcado, vemos uma predominância de uma divisão dos trabalhos atribuídos ao gênero, com as mulheres consideradas pessoas de segunda classe, submetidas a um processo de domesticação e compulsoriamente responsáveis, em esmagadora maioria, ao redor do mundo, desde a infância, por todo o trabalho reprodutivo, exercendo atividades não remuneradas que envolvem gestar e cuidar de outras pessoas, crianças, idosos, doentes, incluindo tarefas domésticas essenciais para manutenção da vida cotidiana – cozinhar, limpar, lavar, arrumar, plantar, cuidar, cuidar, cuidar – e essenciais para a vida e a sociedade.
Tais atividades constituem a chamada economia do cuidado – conceito que revela toda essa expropriação do trabalho de cuidar em uma sociedade, que, mesmo dependendo completamente dele, não o valoriza e tenta torná-lo invisível.
Riane, fala sobre a "verdadeira mão invisível do mercado", esse trabalho de cuidado, que sustenta a vida e a economia.
E para piorar, essas mulheres que cuidam são submetidas a um fenômeno global, que é a violência contra a mulher, que as afeta de forma diferente dependendo de suas realidades e, como sabemos, as que mais sofrem são as descendentes de povos colonizados e escravizados. Mas as mulheres ‘privilegiadas’ também são atingidas – em todo o globo ainda vemos o quanto estamos distantes de construir equidade entre gênero e etnia.
Ao mesmo tempo, ao longo de nossa história, reconhecemos que as mulheres sempre nutriram vínculos profundos com a natureza e seus ciclos. Tradicionalmente, são responsáveis pelo cuidado das sementes e plantios. Historicamente, representam uma grande força de resistência em diversos movimentos, ao redor do mundo, pela preservação e cuidado da vida, em suas diferentes manifestações.
Não por acaso, existe uma relação direta entre as violações sofridas pelas mulheres e pela natureza. E, não por acaso, como diz Federici:
“matar mulheres é a medida mais rápida e mais eficaz de conter a resistência”.
O debate da sociedade que nós queremos é urgente!
E, para isso, é necessário entender e conhecer nossa história cultural e econômica, além de se informar sobre o que continua acontecendo em nosso mundo. É essencial promover espaços para dialogar sobre tudo isso e, principalmente, refletir profundamente sobre o valor que atribuímos ao cuidado, e de que modo podemos tornar possível o redesenho de nossa economia, cuidando de quem cuida, distribuindo o trabalho de cuidado, educando os homens para cuidar, popularizando tecnologias que reduzam o tempo dedicado ao trabalho doméstico, e o mais importante: chamar os homens para essa conversa!
Há muitos anos trabalho com esses temas e, mesmo conhecendo muitos homens que compartilham dessa visão – e que, realmente, se engajam em desconstruir masculinidades tóxicas e em compartilhar o trabalho de cuidar –, ainda encontro, entre homens progressistas que defendem as causas sociais e ecológicas, um desafio de, realmente, equipararem, em valor e importância, o trabalho produtivo com o reprodutivo. E esse é um aspecto crucial, a ser compreendido e transformado, para que possamos promover as necessárias mudanças. Afinal:
“A tarefa. é irmos além dos binarismos de gênero e enfatizar as possibilidades de cuidado que transcendem, seus estereótipos associados(…)Todas as masculinidades têm infinitas capacidades de cuidar, que podem ser expressas em relação à Terra, aos outros humanos e a nós mesmos, simultaneamente”
Hultman e Pulé, em Masculinidades Ecológicas.
Que possamos incluir em nossas conversas a Ética do Amor de Bell Hooks, a Biologia do Amor de Maturana, e o Amor Radical de Satish Kumar, amor, amor, amor, para nos ajudar a compreender o que os povos originários dizem desde sempre.
Que possamos ‘bem viver’ o sumak kawsay e o Teko Porã, que possamos viver em um sistema de crenças que promova uma economia solidária e circular, onde as pessoas, independentemente de suas idades, cores e órgãos, sejam, antes de tudo, respeitadas.
💠 Masculinidades Ecológicas
Este livro é interdisciplinar. Destina-se a alcançar (mas não se restringe a) estudiosos que exploram história, estudos de gênero, feminismo material, teoria do cuidado feminista, feminismo ecológico, ecologia profunda, ecologia social, humanidades ambientais, sustentabilidade social, estudos de ciência e tecnologia e filosofia.
Uma convocação para sonharmos masculinidades a serviço da vida, aterradas em uma profunda ética de cuidado e interdependência. Uma ideia revolucionária."
-Guilherme N. Valadares Fundador PapodeHomem & diretor de pesquisa no Instituto PDH
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