“Uma lua, do tamanho de Júpiter, se despedia no mar.
Gigante e reluzente se escondia atrás de ondas borbulhantes.
Enorme. Mergulhava, pouco a pouco, na maré cheia.
Eu vibrava com a cena que parecia acontecer apenas para os meus olhos.
Era uma festa. Todos ao redor vestiam roupas brilhantes e brindavam em taças de champanhe. Mas não enxergavam o espetáculo diante de nós. A lua desaparecia no mar.
Incrédula eu chacoalhava um a um. 'Será possível que ninguém veja?'
Uma única mulher a enxergou e me olhou como quem divide um segredo. Seus olhos transbordaram e provaram que aquela lua não era uma miragem.
’Meu medo é que as pessoas não vejam o que importa.'Refleti em voz alta.
Acordei.”
*Anotação: Meu medo é deixar de enxergar o que me importa de verdade.
Novembro/2021.
O trecho acima faz parte de um caderno que intitulei como caderno dos sonhos preenchido quase diariamente em 2021. Sempre dei importância para as histórias que minha mente cria enquanto durmo. Quando criança tentava interpretá-los a partir do que diziam nas revistas. Mais crescida, buscava pelos significados na internet. Mas foi só há pouco tempo, quando comecei a terapia junguiana, que consegui vê-los com mais clareza.
Nem todo sonho vira poesia, nem me diz com nitidez as informações que preciso, nem decifram tudo que estou sentindo ou qual caminho devo tomar, mas muitos deles são como disparativos criativos para algo que devo criar ou fazer.
Ailton Krenak, dia desses, entrou furioso pelo meu quarto, dizendo sobre a importância do silêncio. E foi com esse sonho que eu fui parar em um retiro de Vipassana. Foi em sonho também que senti um abraço-casa de uma pessoa que precisava reencontrar e que viria a ser muito importante para mim. E foi em um sonho com baleias e o fundo do mar que o nome Travessias apareceu pela primeira vez.
Mas desde que a travessia #11:sonhos iniciou, tenho flutuado entre a ansiedade e o entusiasmo em relação ao tema.
Escrever a coluna de abertura me fez levar o assunto para uma sessão inteira de terapia. “Não tenho conseguido sonhar.” Iniciei o encontro assim. A afirmação falava sobre minha dificuldade em ter os sonhos oníricos, mas também sobre os sonhos lúcidos e fantasiosos que minha mente sempre esteve disposta e aberta para criar.
A ansiedade aumentava a cada texto que chegava para editar e publicar por aqui. Porque, a cada semana, me deparava com mais e mais evidências sobre a importância do sonhar, de imaginar novos mundos possíveis e me cobrava por não conseguir fazer isso.
Logo após a fatídica sessão de terapia fui invadida por pesadelos. Dormidos e acordados. Era como se eu só conseguisse vislumbrar o que de errado poderia dar. Como se estivesse em um labirinto e nunca encontrasse a saída. Na terapia, me vi confessando que estava mais fácil imaginar o fim do mundo, catástrofes coletivas e pessoais, do que vislumbrar cenários em que as coisas dessem certo. E isso também afetava meu estado criativo.
É que sonhar requer coragem e ação.
E por algum motivo, ainda não tão claro para mim, estava com deficiência dessas duas vitaminas no meu corpo. Logo eu? Pensei. Era hora de resgatar minha carteirinha de sonhante-esperançosa que arregaça as mangas e faz acontecer.
Reli os textos que recebi semana a semana e, dessa vez, eles funcionaram como uma dose de entusiasmo e reposição dessas vitaminas, afinal, estava lendo sonhadores corajosos que incentivavam o sonho coletivo e apresentavam também aqueles que já fazem parte da matéria. Se você ainda não os leu e precisa dessa dose extra de coragem para voltar a sonhar, você pode encontrá-los no final deste link.
Sonhos, literatura e regeneração
O fim do mundo é um cenário que se estende também a outras áreas, como política, artes, cultura e, obviamente, também a literatura. (…) Como fica a literatura, este sonho acordado da civilização, se a própria civilização está sendo questionada? Seja pelas possibilidades tecnológicas que se abrem, seja pelo capitalismo que tudo permeia. Como escrever em tempos tão urgentes e estranhos? Como escrever sobre nós se cada vez sabemos menos quem somos? Como escrever num planeta em acelerada transformação? Escrevemos e já não é e, de novo, já não é a cada frase. Em outras palavras, num mundo cada vez mais incerto, mais irreal, como abordar a realidade?
Carola Saavedra em “O Mundo Desdobrável: Ensaios para depois do fim” (Ed. Relicário).
A crise do sonhar está entrelaçada com as diversas crises que o mundo enfrenta hoje. Ao que tudo indica, eu não estava sozinha nesse bloqueio. À primeira vista, quando pensamos em um mundo em colapso, com manchetes cada vez mais alarmantes, não achamos que esse período pode proporcionar uma terra fértil para vislumbrar futuros ou para despertar algo criativo e inovador.
Mas, talvez, esse seja o período em que mais precisamos ser criativos e abertos para mudanças. E se ao invés de pensar sobre tudo que pode dar errado, começássemos a pensar sobre tudo que pode dar certo?
O livro da citação acima vem me acompanhando nas últimas semanas em que pensava sobre o que escrever por aqui. A autora apresenta a ideia de que o mundo como conhecemos vai acabar. Ouvir essa frase por si só, pode parecer algo ruim, mas ela apresenta também a ideia de que esse fim é uma oportunidade de criarmos algo novo a partir de cosmovisões que antes estavam "soterradas". Uma boa pergunta a se fazer é: Quais mundos quero ver morrer (internamente e externamente)?
Durante as inúmeras perguntas que Carola faz sobre o ato de escrever, ela sugere a importância da paisagem onírica bem preservada. Ela se questiona "o que pode a literatura em um mundo em colapso?" E a todo momento traz a importância do estado meditativo, do sonho, daquilo que vai além da lógica e do que chamamos de sanidade para o ato de criar.
Escrever, pintar, criar também exigem coragem. Precisamos abrir espaços internos para deixar que os sonhos fluam e que a escrita nos escreva.
Há tempos penso nas possibilidades da escrita, de uma literatura deslocada do sujeito, onde tudo tem voz: o rio, a chuva, a floresta, o trovão e até as capivaras. Uma escrita mais próxima do sonho, do transe, da alucinação, do que (ainda) não sabemos. Não um livro que escrevemos, mas um livro que nos escreve. Uma literatura que se dá na compreensão (e humildade) de que não somos nós que a sabemos, mas é ela que nos sabe.
-Carola Saavedra
Talvez esse seja o grande chamado desses tempos. Voltar a enxergar o que importa de verdade. Como disse Carola, talvez a imaginação esteja a ponto de retomar seus direitos. Eu torço para que sim.
Caderno de sonhos
“Faz algum tempo que venho escrevendo contos baseados em sonhos. Eu sonho muito, às vezes acordo cansado de tanto sonhar. (…) Os sonhos me parecem uma boa fonte de temas porque vêm do inconsciente e o inconsciente de cada um é único, pessoal e intransferível. (…) Certo sonhos são de uma categoria especial, muito vívidos, parecem ter energia e comunicar algo. São esses que anoto.
Valéria Martins em “O Lugar das Palavras” (Ed. 7letras).
A citação acima faz parte dos pensamentos de Rafael Sant´Anna, personagem do livro “O Lugar das Palavras”, de Valéria Martins. Rafael é um jovem que está buscando encontrar caminhos para se tornar escritor e me inspirou a voltar a escrever meus sonhos.
Como eu sempre gosto de trazer sugestões práticas para atravessarmos pelo tema, hoje trago a proposta do bom e velho caderno de sonhos, uma recomendação da Valéria, que além de escritora é agente literária à frente da
.Neste vídeo ela conta que o livro “Engenheiro Fantasma” (Ed. Companhia das Letras), de Fabrício Corsaletti, vencedor do Prêmio Jabuti Poesia e Livro do Ano, surgiu a partir de um sonho do escritor! Já pensou?
Eu já recomecei o meu. Se virará histórias a serem contadas, ou um livro eu não sei.
Eu só sei que hoje, em uma noite imersa no silêncio das montanhas, voltei a me lembrar dos meus sonhos. Hoje eu sonhei que Maria Bethânia atendia carinhosamente o pedido de três pessoas. Ela cantaria as três músicas pedidas. Sem hesitar.
Talvez esse seja um bom prefácio (e presságio).
Bons sonhos, sonhadores! E coragem!
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muito bom !!!!!
Que lindo este texto! <3 Tenho um caderno de sonhos também e sempre me surpreendo quando o revisito. Entendo o significado de alguns sonhos só muitos anos depois. Acho que é a linguagem mais potente que temos de comunicação com nossa intuição - e igualmente enveredo nas interpretações pela perspectiva junguiana. Vou entrar na lista do Escritas Regenerativas!