Eram 5h30 da manhã, entre fechar a mala e correr para o aeroporto saindo de Belo Horizonte com destino a São Paulo, olho para a mesa de cabeceira do amigo que carinhosamente me hospedava e ali haviam dois livros.
Coincidência ou não, um era do autor que tinha escolhido para essa travessia e o outro me chamou atenção pela beleza. No impulso de investigar sobre o que se tratava, me aventurei em pegar, olhar de perto e resolvi abrir aleatoriamente como a gente faz com aqueles livros de provérbios, sabe?
Através de uma escrita envolvente, fui tomada de súbito por uma mensagem que chegava como uma flecha certeira ao seu destino. No título estava escrito: “14 de agosto, ano do retorno para si, primavera”. Rapidamente tirei foto daquelas páginas, com a intenção de que ficasse mesmo era gravado na retina.
A Região Abissal do Mar, livro de estreia da escritora mineira Bárbara Buzatti, que também é atriz, encenadora, arte-educadora e pesquisadora. Trata-se de uma ficção autobiográfica, que nas palavras da escritora é uma conversa com as ausências.
As cartas escritas a um ser ausente é uma viagem às profundezas do mar contada a partir do tempo cíclico e impermanente de quem enxerga a vida em suas conexões com o aqui e agora:
ainda na superfície > o outono-inverno do ano do golpe; em mar aberto > a primavera do ano seguinte e na região abissal do mar > a primavera do ano de seu retorno a si.
À medida que eu fui lendo esse livro, singelo em seu tamanho, mas grandioso por seu conteúdo, fui me deparando com uma melancolia e tomada pela poesia da sua escrita.
“Às vezes é horrível a forma como são tratadas as pessoas fortes. É sempre essa certeza violenta de que vão conseguir. Mas a gente sabe muito bem que nada é tão certo, nem tão errado, e que muita coisa depende de justiça. Na maioria das vezes a vida é mais junta do que justa. É rejunte, argamassa”.
Fiquei imaginando se a conversa com esse interlocutor ausente não seria em alguma medida uma conversa com nosso subconsciente, na tentativa de estabelecer um diálogo em busca da aceitação de coisas um tanto quanto naturais como: os medos, as perdas, os lutos, as pequenas mortes diárias e nosso potencial de promover mudanças. O que me levou a algumas reflexões:
Quanto tempo leva o luto de perder algo?
Quanto tempo leva para superar um processo necessário de mudança?
Será que algum dia o processo de autoconhecimento fica mais suave?
Não sei vocês, mas é muito comum não refletirmos sobre esses pontos na correria do dia-a-dia.
No entanto, com a chegada do fim de ano, é latente o desejo de se revisitar e renovar as esperanças. Em um exercício de futuro e de respiro em meio a tanta agitação, depositamos no ano que vem todas as expectativas de boas novas e esperanças.
Abrimos mão do passado na mesma velocidade de um PIX e não importa mais quem fomos, somente o que seremos! E pouco falamos sobre os lutos que precisam ser processados a cada fim de ciclo.
Essa circuito de vida, morte, ciclo, luto, inconsciente me fez recordar de todas as indicações tecidas por mim nessa temporada como colunista do #TeIndicoUmLivro. Pois, como falar sobre esses temas sem falar de fé e respeito? Como Mãe Stella nos ensinou em seu livro “Meu Tempo é Agora” ou sem falar da importância de ritualizar e cuidar das transformações que passamos ao longo dos anos como nos ensinou João Tukano em seu livro “O mundo em mim: uma teoria indígena e os cuidados sobre o corpo no Alto Rio Negro”.
A arqueologia do sentir proposta por Bárbara Buzatti em a Região Abissal do Mar arremata o que foi produzido até agora na coluna e encerra a temporada de 2023, convidando você a degustar em doses homeopáticas esse livro. Tenho certeza de que será uma ótima companhia em uma tarde de final de ano ou nas férias de verão, porque como diria Conceição Evaristo:
“Há mundos submersos que só o silêncio da poesia penetra”.
Jogo rápido com a autora
Tainana: A pergunta básica que todo leitor tem curiosidade e vontade de fazer ao se deparar com um escritor é sobre: O que te motivou?
Bárbara Buzatti: O que me motivou foi a busca por uma saída. Para mim, escrever tem a ver com encontrar-se. E eu precisava desse reencontro comigo. Sublimar minhas dores, transformar em outra coisa e dar vasão. Escrever também é um jeito de escapar da morte.
T: Durante a leitura, eu fiquei imaginando se as cartas enviadas a esse ser ausente não seria em alguma medida um diálogo com nosso inconsciente. E pesquisando sobre você me deparei com a informação de que tinha trabalhado por alguns anos com Saúde Mental através da com arte-educação. Então te pergunto: Há alguma influência dessa experiência na escrita desse livro?
B: Atuei na Rede de Atenção Psicossocial por seis anos. Nessa posição incomum de artista na saúde. Então, tive que aprender a acolher muito bem a linguagem do outro. Esse atravessamento da saúde mental está em mim e no meu trabalho, sem dúvida. Em alguma medida o interlocutor ausente é o inconsciente, é a angústia que não produz respostas, é a falta, é o objeto de causa do desejo.
T: A arqueologia do sentir que você cita pontualmente, mas que ao mesmo tempo percebo que é uma construção que enlaça esse conjunto de cartas, é algo proposto por você ou está ancorado em alguma teoria?
B: Não diria que apenas uma teoria ancora esse livro. De fato, ele é um trabalho arqueológico, no sentido de que ele recolhe, junta, esses diversos fragmentos meus, quase como fosse possível perceber todas as teorias que me impactaram ao longo da vida ali. Por isso também escolhemos chamar de uma ficção autobiográfica. Mas o fato é que a psicanálise está presente com mais força. Especialmente a metáfora do iceberg de Freud, que nos explica que o inconsciente é a base submersa do iceberg, aquilo que não se vê. E a região abissal do mar é justo esse lugar do inconsciente, onde a nossa personagem pretende acessar.
T: Por fim, gostaria que comentasse como tem sido a repercussão dessa publicação e se está trabalhando em algo novo ou na ampliação desse trabalho?
A repercussão do livro tem sido muito acima das expectativas. Promovendo sempre discussões extremamente ricas como essa, entrevistas, documentário. Quase todos exemplares estão esgotados, por isso pensamos em uma reedição desse trabalho. E sim, paralelo a isso, já venho trabalhando num segundo livro, experimentando outros temas e outra linguagem.
A escritora nos convida a assistir o doc que participou, à convite da Laduá, sobre o processo de criação do livro.