Como é maravilhosa a capacidade de sonhar. A cada noite, nosso cérebro esquece das amarras dos padrões cotidianos e nos brinda com vivências fantásticas. Faz isso lá na casinha dele, juntando pessoas, formas, tempos, espaços, seres, misturas de todo tipo. Nessas misturas, nosso controle está cansado e está dormindo, então tudo é permitido.
Seja o sonho qual for, não tem alguém lá para limitar qualquer possibilidade, ninguém para avisar que aquela vivência é impossível. Um tanto de coisas que a gente deixa guardada no inconsciente aflora, revelando muito mais do que somos no dia a dia. Por isso, inclusive, são materiais de trabalho da psicanálise e da psicologia analítica, bases da ciência da psicologia que nos permitem ampliar o autoconhecimento.
Para mim, sempre foi muito estranho usar a palavra sonho para expressar desejos.
A pergunta “qual é o seu sonho?” nada tem a ver com sonhar. Geralmente, respondemos a essa pergunta com algum desejo, que é cheio de racionalidade, de realidades idealizadas e individualizadas, geralmente de difícil alcance. Meu sonho é viajar pelo mundo, é ser rico, é ser feliz o tempo todo, é ter uma casa... E, nos sonhos de verdade, as coisas simplesmente acontecem, não é algo para o futuro.
Desejos nada tem a ver com sonhos, e provavelmente nada tem a ver com felicidade também. Uma vez eu li (não lembro onde) uma fórmula da felicidade:
felicidade = satisfação/desejos.
Tão elegante quanto a fórmula da teoria da relatividade, em que Einstein taca toda a relação entre matéria e energia numa fórmula simples, essa fórmula quer indicar que felicidade é inversamente proporcional aos desejos, mas diretamente proporcional à satisfação.
Quanto mais satisfação a cada desejo, mais a gente tende a ser feliz.
Não é sobre ver o sol nascer da maior montanha do mundo, nem sobre comer o melhor doce do mundo numa confeitaria em Paris. Ser feliz é ter muita satisfação a cada nascer do sol, a cada bocada numa goiabada com queijo, a cada momento junto com quem a gente ama. Tentar transformar sonho em desejo é, na verdade, uma grande tática do consumismo, levando a felicidade sempre como algo lá na frente, que ainda não foi atingida porque ainda não foi comprado aquilo que você precisava.
O consumismo vai unificando, homogeneizando e procrastinando os sonhos.
Mas sonho é diversidade, é originalidade, é mistura de possibilidades, é hoje e não amanhã. É possibilitar realidades com satisfação individual e coletiva, para além dos padrões estabelecidos.
Longe da valorização do consumismo, essas realidades felizmente acontecem, revolucionando o cotidiano de quem tem coragem - que é o que a vida quer da gente, como diz Guimarães Rosa. E é justamente quando se reconhece nos outros essa coragem que sonhos vão transformando realidades e padrões. Como canta Raul (parafraseando Miguel de Cervantes), “sonho que se sonha só é só um sonho que sonha só... sonho que se sonha junto é realidade”.
E as realidades são inúmeras.
Por exemplo, o padrão de estrutura agrária na maior colônia escravocrata do mundo – o Brasil – é de que praticamente a metade da terra esteja na mão de menos de 1 % dos proprietários. O padrão de produção agrícola, nessas propriedades, é a velha “plantation”, requintada pelas novelas e pelo “agro é pop”: produzir em monocultura em grandes áreas, gerar riqueza para poucos, desterritorializar diversidades e garantir a propaganda massiva de que isso é desenvolvimento.
Felizmente, tem gente que sonha, e põe o sonho em prática, coletivamente. “Enquanto os homens exercem seus podres poderes”, o maior movimento social do mundo – o MST – ao pressionar a reforma agrária prevista em lei e ter a agroecologia como referência produtiva, vem transformando assentamentos rurais em espaços em que a solidariedade vale mais do que o consumismo; comunidades remanescentes de quilombos vêm mantendo e resgatando práticas produtivas ambientalmente adequadas, ao passo que valorizam os mutirões e o trabalho coletivo; centenas de comunidades de agricultores familiares vem produzindo comida em alta produtividade, no mesmo espaço em que geram diversidade, protegem o solo, recuperam a água e fixam carbono, a partir de agroflorestas no rumo da sintropia. Isso é hoje, agora, e está sendo feito por quem sonha e tem coragem para romper padrões.
O padrão de diversas instituições religiosas que se dizem cristãs, desde o Concílio de Nicéia, tem sido a exclusão para a salvação, o que nada tem a ver com o “religar”. Da Inquisição à propaganda armamentista que vimos igrejas promovendo nos últimos anos no Brasil, a fraternidade muitas vezes passa longe dos sermões e da prática religiosa. Felizmente, tem gente que sonha, e vive, resgatando a prática da solidariedade como base de nossa religação com o divino e com o outro, vivenciada no cristianismo primitivo. Entre tantas realidades deste sonho possível, o Padre Júlio Lancellotti segue todo dia relembrando como fazer o que está escrito no Evangelho, mesmo com a perseguição dos “homens de bem”, dos velhos fariseus de todos os tempos.
O padrão do ensino nas escolas é justamente educar para os padrões. Mas felizmente há professores e alunos que rompem barreiras, possibilitando aprendizados que vão muito além, em múltiplas experiências pedagógicas, mesmo com a desaprovação institucional. E cada um de nós vive ou já viveu experiências desse tipo. Não é algo para iluminados, ou então iluminados somos todos. O que varia é a vontade, ou a coragem, de acender luzes. Em 2022, em pleno momento de campanha eleitoral polarizada, minha filha mais nova conduziu uma peça, ao final de seu ensino médio, cujo teor revolucionário que terminava em flores em meio a “ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro” desempedrou corações e foi suficiente para a escola suspender o grupo de teatro.
Os exemplos seguem infindáveis. Mas o que quero chamar a atenção é que para o bem viver das pessoas e de todos os seres que vivem na terra em que se planta comida com amor, ou para quem vive na Cracolândia e encontra cuidado e fraternidade, ou para quem promove a crítica social pela arte ou pela educação, entre tantos outros exemplos, a satisfação não é promessa que virá com o consumismo, com o comunismo, com o capitalismo ou com qualquer outro “ismo” prometido.
É realidade revolucionária de padrões, vivenciada hoje e coletivamente, por quem tem coragem de transformar. Por quem tem coragem de ir além do desejo ou da esperança, que é coisa do futuro. Como nos lembra Paulo Freire:
“é preciso ter esperança do verbo esperançar, porque tem gente que tem esperança do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é não desistir, esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro jeito”.
Toda noite, os sonhos nos lembram das possibilidades de realidades impossíveis, quando não temos o crivo da censura e acordamos neurônios e sinapses adormecidos durante o dia. E, todo dia, tem gente transformando o mundo onde está, resgatando diversidades, promovendo originalidades, construindo novas realidades, mais solidárias, mais justas, mais criativas... criando novos neurônios e sinapses nas redes social e historicamente estabelecidas.
Afinal, como já dizia Belchior:
“Viver é melhor que sonhar”.
💠Um sonho de horta coletiva
Hoje é dia de lançamento do livro Horta das Corujas – minha história de um pequeno paraíso em São Paulo e guia para plantio urbano.
A história sobre como a Horta das Corujas foi criada e se transformou em um pequeno paraíso na maior cidade da América Latina é lindamente contada por Claudia @claudiavisoni , jornalista de longa data e agricultora por escolha, e inclui as inúmeras dimensões que um projeto dessa qualidade abarca: as trocas pessoais; as relações com o bairro, a cidade e o poder público; as interações e afetos com os seres não-humanos; a economia da dádiva; a segurança alimentar; a saúde mental; a educação de crianças e adultos... entre outras.
A leitura desse livro nos leva, ao mesmo tempo, a uma bela aventura humana, ao chamado da Teia da Vida e a uma ação política revolucionária. O livro está à venda com 20% de desconto no site da Bambual Editora.
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