Entre todos os seres viventes neste planeta nós somos a única espécie capaz de narrar os próprios sonhos, tanto aqueles que experimentamos durante o sono quanto aqueles que visualizamos acordados. O sonhar é uma habilidade que também ocorre em outras classes de animais vertebrados: mamíferos terrestres, aves, lagartos; além de invertebrados: lulas, polvos, moscas-da-fruta e aranhas-saltadoras. Isso revela que essa habilidade evoluiu mais de uma vez na teia da vida e que, portanto, é uma característica importante para a sobrevivência e o florescimento dos organismos.
Segundo Sidarta Ribeiro, no livro “O Oráculo da Noite”, ao sonharmos, processamos as vivências do dia unindo-as com memórias passadas para imaginar novas rotas, ideias e comportamentos que nos auxiliem e nos guiem durante a vigília. Além disso, usamos as mesmas regiões cerebrais tanto para o sonhar quanto para a imaginação, o que indica que são processos semelhantes. Assim, nossos sonhos são como portais, oráculos que podemos consultar sobre os nossos desejos, emoções, tendências e intenções, estejamos adormecidos ou despertos, e é a origem da criatividade da vida.
Yacumama
Há uns cinco meses eu tive um sonho interessante. Tenho a sorte (ou o privilégio) de quase sempre lembrar dos sonhos pela manhã. Na noite de 29 de julho de 2023, sonhei que andava com um grupo de pessoas em uma estrada arenosa. Olhei para os lados e vi que a estrada era, na verdade, um grande sulco cercado por dois barrancos altos, como se fosse um leito seco de rio, cujo topo possuía uma vegetação baixa com algumas árvores. No meio do caminho, eu vi um Xamã encostado no barranco e ao se dirigir a mim, ele disse: “Yacumama”. No sonho, pensei: “Preciso lembrar disso quando acordar”. Então, uma chuva forte começou e procuramos um lugar alto para nos proteger. Neste momento, acordei.
Pela manhã, a primeira coisa que fiz foi dar um Google para tentar descobrir o que aquela palavra significava. Encontrei uma lenda dos povos da Amazônia peruana, sobre uma cobra gigante. A palavra Yacumama, de origem quéchua, significa “Mãe das Águas”, a mãe protetora de todas as criaturas aquáticas e capaz de engolir qualquer pessoa que ameace o seu habitat. Esse mito me lembrou muito da Cobrona, uma lenda que os meus avós contavam sobre a existência de uma cobra gigante adormecida sob a catedral da cidade e que só acordaria no dia do juízo final para engolir tudo e todos.
Embora o sonho tenha sido fora do comum, pensei que ele tinha muita relação com os pensamentos que ocupavam a minha mente naquele período: marido em expedição pelos igarapés da Amazônia paraense, conversas sobre o desmatamento e os prováveis efeitos do El Niño que estava se configurando, além da minha viagem para Alter do Chão que aconteceria em um mês. Ao chegar em Alter no fim de agosto, encontrei amigos que moram lá há alguns anos e no dia seguinte fui andar de barco no Rio Tapajós. Quando vi os barrancos sulcados em uma das margens do rio, lembrei do sonho e decidi partilhar com eles, ao que o meu amigo disse: “Será que é uma previsão para uma grande seca este ano?”
A paisagem onírica
Os sonhos são nossas memórias da vigília misturadas com nossos desejos, emoções e motivações e nem sempre são tão agradáveis como esperamos. É nesse espaço mais íntimo da nossa consciência que processamos também nossos traumas e medos. Imagine como anda a paisagem onírica das crianças que, neste momento, estão vivenciando situações de violência e guerra, estão sentindo fome e todo o tipo de escassez e sofrimento. Talvez você consiga se lembrar de sonhos difíceis que aconteceram em momentos delicados da sua vida. O que sonharam as pessoas, os mamíferos terrestres e as aves que presenciaram a seca do Rio Negro no último ano?
E o que sonhamos nós, pessoas urbanas, principalmente aquelas que chegam muito tarde em casa, dormem pouco, despertam muito cedo para trabalhar e passam o dia apressadas pulando de compromisso em compromisso? Davi Kopenawa diz, em “A Queda do Céu”, que as pessoas comuns, espremidas pelo paradigma econômico, só sonham com elas mesmas, com aquilo que acontece cotidianamente, enquanto os sonhos dos xamãs são capazes de alcançar outros reinos, como o dos xapiri, os espíritos guardiões da floresta. Nestes sonhos, eles recebem alertas sobre perigos e imagens de animais de caça. Em muitas culturas originárias, os sonhos são cruciais para a vida desperta. Agora, estamos prestes a redescobrir essa tecnologia. A nossa sociedade do cansaço parece estar nos conduzindo, cada vez mais, ao sono e ao sonho.
Tecer sonhos coletivos
Thomas Berry, eco-teólogo e autor do livro “O sonho da Terra”, disse que para alcançarmos uma cultura sustentável devemos direcionar a nossa atenção para as visões reveladoras que brotam das profundezas da psique humana e do encontro com a natureza sagrada, e não apenas da nossa racionalidade. Ele chamou esse processo de inscendência, em oposição ao conceito de transcendência, e uma das formas de acessar essas visões é através dos sonhos e da imaginação profunda em conexão com a teia da vida e com a beleza e o conflito inerentes a nossa interdependência. Mas além de abrir espaço para que essas experiências pessoais aconteçam, é importante partilhá-las.
Narrar é tecer os sonhos coletivamente. É abrir caminho para que emerja da comunidade humana as suas aspirações mais urgentes e as suas esperanças mais promissoras. Joanna Macy diz que os sonhos que ultrapassam a nossa realidade comum são inspirados pelo surgimento gradual de um nível mais amplo de consciência decorrente de nossas próprias interações sistêmicas:
“Somos como neurônios em um cérebro maior, e estamos nos tornando conscientes de que esse cérebro maior está pensando”.
Que possamos nos reconhecer atados ao tecido do nosso sonho coletivo e partilhar a alegria de saber que em cada mente conectada há uma possibilidade de cura.
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