"Nada jamais continua, tudo vai recomeçar “.
Esse é o verso do poema Canção do Dia de Sempre, do Mário Quintana, que mais gosto.
Sinto como se o poeta expressasse um alívio pela ciclicidade eterna da vida, uma alegria em oferecer aos ventos e às águas dos rios a ilusão da completude para, mais uma vez, colher sonhos e esperanças. Os ciclos nos inspiram porque permeiam o viver. Como agulha e linha atravessando um tecido vivo em movimentos circulares, eles dão coesão a esse nó ao qual chamamos eu. A partir das relações que costuramos, criamos a nossa história e fazemos isso apoiados em ciclos celulares, ritmos circadianos, ciclos biogeoquímicos, rotações e translações.
A noção de ciclos é tão tangível que parece inacreditável que um paradigma econômico baseado em uma linha reta ascendente e infinita tenha se instalado entre nós. Mas agora, nesta era planetária, somos o tempo todo despertados pela impermanência, seja o fim de espécies, ecossistemas ou populações. É verdade que em alguns milhões de anos, boa parte da vida não passará de camadas de rochas achatadas. Seremos apenas faixas coloridas decorando a paisagem, como os trilobitas que desapareceram há 250 milhões de anos atrás, ou os dinossauros há 65 milhões, dos quais restam apenas fósseis incrustados na terra amassada.
Em seu livro “Os Mastodontes de Barriga Cheia e Outras Histórias”, o ecólogo Fernando Fernandez comenta sobre a pesquisa de Raup e Sepkoski, publicada em 1984, que revelou uma periodicidade nas extinções em massa ocorridas no planeta. Os pesquisadores analisaram o número de espécies extintas desde 250 milhões de anos atrás até hoje e descobriram que regularmente, a cada 26 milhões de anos, uma grande extinção marcava o tempo geológico. Entre as possíveis razões dessa periodicidade, foi proposto o choque de meteoros provenientes da nuvem de Oort que orbita a periferia do nosso sistema solar.
Novas pesquisas questionam essa periodicidade, mas o fato é que a confirmação da possibilidade de fins de mundo regulares e por motivos cósmicos deve ter provocado um assombro na humanidade atual. Conhecemos há bastante tempo a devastação das guerras, epidemias, eventos climáticos e geológicos, mas o céu estrelado não nos parece ameaçador. Entretanto, o paleontólogo Stephen Jay Gould comparou a periodicidade observada pela ciência com a narrativa de Shiva Nataraja. Para os habitantes do Sul da Ásia, Nataraja está associado a conceitos filosóficos sobre ciclos cósmicos eternos de destruição e criação.
O compasso de sua dança e o ritmo do universo é marcado pelo som do tambor, e quando ele pára de tocar para mudar o ritmo, todo o universo se desfaz, ressurgindo quando a música recomeça.
A resiliência é um atributo deste planeta. Ao final de cada evento de extinção em massa, o processo de seleção natural produziu novas formas de vida. Há indícios científicos de que a biodiversidade vem aumentando desde o início do eon fanerozóico (últimos 540 milhões de anos), e que os oceanos se tornaram mais acolhedores para a vida marinha e menos vulneráveis às extinções. Isso não quer dizer que não estejam ocorrendo muitas perdas nesta sexta extinção em massa e que não estejamos ameaçados, mas a vida vai se recuperar.
Embora estejamos conscientes do fim, tentamos ignorá-lo, evitá-lo, adiá-lo, mas ele permanece como uma sombra ao nosso lado. Somos feitos de hábitos, pessoas e lugares, dos quais boa parte só existe agora em nossas lembranças. Acreditamos em imagens tridimensionais construídas por impulsos elétricos no nosso cérebro, mas a memória é um achatamento do eu, um fóssil que desenterramos para justificar atitudes. Não podemos apagar o passado, mas podemos fazer dele um bom composto e preparar a terra para a semeadura. Todo o fim é um começo, uma renovação da energia e da vontade. Honrar as perdas é tão transformador quanto celebrar os ganhos.
Estamos encerrando mais um ano, o tambor de Shiva vai parar e, quem sabe, poderemos reconhecer em nós o espaço resiliente e criativo sempre aberto para fins e recomeços, abandonar visões de mundo ultrapassadas e abrir espaço para uma nova irradiação adaptativa de ideias e modos de viver. Sem nenhuma lembrança das outras vezes perdidas, vamos apanhar a rosa dos sonhos com estas mãos distraídas.
Mais um ano se encerra. Este é um bom momento para fazer uma pausa, organizar um altar com imagens e objetos que simbolizem o que foi perdido e pensar em hábitos que você gostaria de abandonar. Agradeça e celebre também o que foi alcançado. Escreva cartas, preces, poemas, ouça boa música, deixe o seu corpo e a sua mente descansar. Quando estiver pronto(a), ao invés de desenhar um plano com objetivos para o próximo ano, escreva uma intenção sincera e comum:
Que eu possa aceitar que a mudança é inevitável e que eu possa ver nos olhos de todas as pessoas e seres a mesma chama que brilha em meu coração.
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