É preciso olhar com os olhos de ver
#Te Indico um Filme: Retratos Fantasmas | travessia #13: desacelerar
Desacelerar é cada vez mais difícil diante das tantas cobranças que temos na vida atual. Diante de um mundo que cobra proatividade e no qual estamos a todo tempo conectados. Somos também nós integrantes de um sistema de programação, definidos por números e sequências. Respirar, esvaziar a mente, encontrar um tempo livre no qual vamos simplesmente sentir o fluxo da vida e observar o mundo tem se tornado um desejo quase inatingível. Com isso, lidar com os acontecimentos, com o tempo, acolher a mudança, pensar em desacelerar para experimentar o presente, me conduziu a imaginar que o documentário de Kleber Mendonça Filho, “Retratos Fantasmas”, pode ser uma dica de cinematografia interessante, uma proposta de reflexão diferenciada.
Trata-se de um convite a olhar com calma: a vida, a cidade, os centros urbanos, as pessoas. Gastar tempo no observar, no ouvir, no sentir ─ exercício estimulado com delicadeza a cada cena do documentário. É preciso ter calma para apreciar a beleza capturada, se deixar atravessar pela proposta do ritmo menos acelerado, discernir as pausas, apreciar a contação/narração, refletir sobre como lidamos com os processos de nostalgia e mesmo, morte. Não apenas das pessoas, mas dos animais, dos períodos, de tudo o que nos cerca.
As mudanças são/estão marcadas pelos afetos, estes que se manifestam na estética do espaço, seja ele privado ou não, e no fantasma do que fica, embrenhado no presente, ou no que parte, como marca do passado.
Esse é um filme delicado e pessoal, sendo possível encontrar em suas imagens uma rede para deitar e apreciar as elaborações e afetações a que somos estimulados.
O longa dura 1 hora e 33 minutos, levou 7 anos para ficar pronto, e reúne imagens de arquivo e fotografias, buscando explorar a relação de Kleber com o apartamento de sua família no passar das décadas, sua observação às transformações que ocorrem, bem como a relação da população com importantes cinemas de rua, extintos com o desenvolvimento urbano acelerado e a padronização dos modos de vida nas cidades, não apenas no Brasil, mas ao redor do mundo. Nesse caso também, através do local, a Recife de Kleber, refletimos o mundo.
Cerca de 60% do documentário é composto por material de arquivo datado dos anos 90; além do acervo pessoal, há registros encontratados na Cinemateca Brasileira, no Centro Técnico do Audiovisual e na Fundação Joaquim Nabuco. No universo do filme se destaca o Cine Palácio e Seu Alexandre, responsável por passar os filmes. Kleber, um jovem estudante de cinema nesta época, trabalhava lá a pouco como assistente dele. Deste encontro de trabalho é que surgem os registros amadores que vamos encontrar no documentário.
Para quem não sabe ou não se lembra Kleber é o autor de Aquarius e de Bacurau, filmes importantes da cena audiovisual contemporânea. O cineasta sempre tem como assinatura uma abordagem política, mas no caso de Retratos Fantasmas, embora exista, em dado momento, um enfoque sobre a maneira como o nazismo tentou dialogar com o cinema e mais especificamente neste corte da cidade, aqui ela se manifesta de forma sutil, justamente nessa observação das alterações do meio, tidas como progresso, e no passar do tempo, na observação de uma realidade que se esvai e se finda ─ morre.
Há beleza em analisar as transformações que nós deixamos nos espaços, nos lugares onde vivemos. São marcas materiais e imateriais, isto é profundo. Também há algo de muito especial em ser voyer dos espaços internos dos cinemas e através deles refletir sobre os processos da vida. Os cinemas de rua dão exatamente o tom desta mudança: antes um mundo lúdico, marcado pela arte, pela troca entre as pessoas, pelas interações e poesia, para um mundo asséptico e repetitivo, como este marcado pela proliferação das farmácias, shoppings e pela uberização. Nesse aspecto, desacelerar para olhar detidamente o que nos cerca, mesmo o que se configura como banal, nos leva a questionar sobre a normalidade do mundo em que vivemos. Será mesmo isto o normal? É preciso olhar com olhos de ver.
Gostou da indicação? Deixe seu comentários sobre as impressões que teve com o documentário. ;)
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