Cuidado: originalidade, conexão, dádiva e impermanência podem curar
Travessia #12: Cuidar
Em latim, cuidado significa cura. Nos ensina Leonardo Boff que é pelo cuidado que se chega a uma sintonia com as coisas, a uma convivência amorosa.
Para falar deste cuidado essencial, convido o leitor e a leitora a caminhar pela floresta. Na falta de floresta – e haja falta – basta um terreno baldio. Pode parecer um convite estranho, mas acredite, o cuidado está lá.
Comecemos observando locais do terreno onde não há plantas.
Quando a terra fica nua - quando retiramos dela sua roupa de vegetação -, o sol e a chuva ressecam e machucam sua pele, criando rugas de erosão.
Mas logo aparecem os capins, que chegam de sementes trazidas pelo vento. Os capins conseguem crescer rapidamente em ambientes assim. Eles fecham as feridas abertas e criam um emaranhado de raízes superficiais, que começa a reter a água da chuva.
Com um pouco mais de umidade na terra, chegam as margaridas, os dentes-de-leão. Essas plantas já apresentam raízes um pouco mais profundas e vão abrindo caminho para a água e o oxigênio chegarem mais fundo. Quando florescem, os dentes de leão trazem abelhas e outros insetos para a área, que vêm se alimentar do néctar de suas flores e levam pólen para fertilizar centenas de plantas, por vezes a quilômetros de distância dali.
Com a terra um pouco mais estruturada, começam a nascer os primeiros arbustos e árvores. Além de levarem suas raízes ainda mais fundo - e, com elas, mais vida para o solo - as árvores servem de poleiros para aves e morcegos, que em seus galhos vêm descansar. Enquanto descansam, estes animais lançam sementes de outras árvores, as quais vão germinar e diversificar cada vez mais a vida do lugar. Além disso, a sombra das árvores e arbustos deixa a temperatura mais amena e a umidade do ar mais elevada, criando condições ideais para a vida de várias outras espécies de plantas e de animais.
Aos poucos, a partir da expressão da originalidade de cada ser que habita essa área, a vida vai se consolidando, em cada vez mais biodiversidade e abundância.
Se ficarmos um bom tempo observando a vida de cada organismo desse lugar, perceberemos o quanto cada um atua, cada qual do seu jeito, para cuidar do todo. Não há separação entre trabalhar para si mesmo e apoiar o conjunto. É simplesmente vivendo sua originalidade, de forma acoplada com o ambiente, que cada ser contribui com sua parte para a dádiva coletiva.
Quando uma espécie já fez o seu papel para deixar o ambiente com mais diversidade e mais fertilidade, ela vai saindo daquele espaço. Na medida em que as copas das árvores vão deixando o ambiente mais sombreado, por exemplo, os capins, que precisam de muita luz solar direta, vão deixando a área, procurando outros locais para cumprir seu papel. Ali, sua missão foi cumprida, no momento certo.
Cada ser que por ali passa deixa o ambiente melhor do que estava antes dele chegar, exercitando, a partir de sua originalidade e conexão com o todo, a dádiva e a impermanência.
E o produto do trabalho de todos os organismos da biosfera é a geração de condições adequadas e precisas para a vida na Terra.
Explicando melhor: é justamente a grande mistura de vida acontecendo em cada lugar do planeta que faz com que tenhamos, por exemplo, 21% de oxigênio e um pouco mais de 0,03% de gás carbônico no ar.
E por que isso é importante?
Se o oxigênio estivesse abaixo de 19%, nada entraria em combustão, e o fogo não seria um dos quatro elementos da natureza; se estivesse acima de 25%, a queima espontânea seria regra, o tempo todo.
É 21% a proporção de oxigênio ideal para a vida na atmosfera; nem mais, nem menos.
Até poucos anos atrás, a temperatura média do planeta era de 15 graus centígrados, o que permite a vida como a conhecemos hoje. Se a proporção de gás carbônico fosse de 0,01% o planeta todo seria gelado. É justamente a proporção exata de gás carbônico que permite um efeito estufa ideal à vida. Se a proporção chegar a 0,1%, a maior parte das plantas não conseguirá fazer fotossíntese, e os extremos climáticos causados pelo aumento inimaginável do efeito estufa tornarão a vida insustentável.
São todos os organismos da Terra respirando, ciclando nutrientes, convivendo e morrendo que contribuem, cada um, na manutenção dessa proporção.
É a vida que produz as condições precisamente adequadas para que a vida funcione!
Cada capim, cada dente de leão, cada abelha, cada ave, cada morcego, cada árvore... cada um deixa o ambiente melhor por onde passa, e todos juntos fazem a vida do planeta funcionar. A dádiva da originalidade e da impermanência de cada um se manifesta na dádiva coletiva.
Infelizmente, é nessa belíssima sinfonia que temos andado, enquanto humanos, bem desafinados. É claro que a orquestra toda se desarranja, quando, por afastamento à missão fundamental de cuidado de cada ser, resolvemos impor nosso barulho como regra.
E é claro que todo mundo sofre. Estamos vivendo a sexta e mais profunda extinção em massa do planeta. Em todas as outras vezes ao longo das eras, as extinções de espécies ocorreram por cataclismas naturais. Dessa vez, somos nós o cataclisma, a partir de nossa vida nada conectada.
Em nome da ilusão egoísta de que seríamos capazes de viver desconectados, mesmo como filhos da Terra que somos, temos sido muito descuidados. E como cuidar significa curar, viver sem cuidado é estar doente. E não falta ansiedade, depressão, solidão, tristeza, obesidade, hipertensão, câncer e alergias para deixar claro este diagnóstico da humanidade.
Mas ainda dá tempo.
Começamos este texto dizendo que é pelo cuidado que se chega a uma sintonia com as coisas, a uma convivência amorosa. É justamente pelo cuidado, pela reconexão com a natureza e com nós mesmos, que ainda temos chance de garantir que a vida flua neste planeta pelos séculos e séculos que virão.
Originalidade, conexão, dádiva e impermanência são ingredientes do bem viver, que a natureza insiste em tentar nos ensinar, e que tem muita gente praticando, já a um bom tempo. Ou aprendemos, ou adoecemos, levando junto toda a biosfera como a conhecemos.
Já passou da hora da gente começar a se cuidar!
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