
Desde a última coluna eu resolvi abrir um espaço para que a capoeira e os aprendizados a partir da capoeira sejam "escutados" por um público não capoeirista. A capoeira nasce no silenciamento e na exclusão. Por muito tempo foi isolada, chegou a ser proibida por lei no século passado, marginalizada pela sociedade, se re-empoderou, encontrou seus caminhos de sobrevivência dentro de condições improváveis e hoje se expandiu em todo o mundo. Embora nas últimas décadas tenha conquistado milhares de pessoas nos 5 continentes, os aprendizados de capoeira ainda permanecem no universo relacional da "capoeiragem".
E é aí que eu gostaria de chamar a sua atenção. Existe um lugar já alcançado pela capoeira que muitas vezes nem é percebido pelo capoeirista: a prática da capoeira em si é transformadora.
A capoeira vem de um lugar que o mundo mais precisa nesse momento: uma prática genuinamente decolonial, terapêutica, baseada no movimento corporal, que integra música, arte, teatro, acrobacia, palhaçaria, dança, arte marcial, coletividade, malandragem e muitas mais em uma só.
Por diversos motivos, pela sua própria estratégia de sobrevivência, a capoeira, foi provocada, se integrou e absorveu um tanto de outras culturas que influenciaram diversas nuances que antes não existiam, como por exemplo os sistemas de graduação das artes marciais orientais, o uso de uniformes e a competitividade dos esportes ocidentais, aprendizado com sequências mecânicas, a polarização entre “grupos” hierarquizados e a “projetificação” do empreendedorismo liberal.
Na capoeira não tem um livro que define os fundamentos, ou um guia a ser seguido, nem uma junta directiva que resolve o que está “certo” ou “errado”. É descentralizada por natureza até hoje em dia.
A escuta na capoeira
Eu costumo trazer alguns princípios da capoeira para apoiar o aprendizado em diversos outros temas, como: cooperação, descentralização, liderança, complexidade, ação e reação, e diversas outras, dentre elas a “escuta”. Aprendemos isso através do corpo e brincando, ativando outras formas de saberes.
A natureza do jogo da capoeira (em geral) é um diálogo corporal em que se estabelece uma complexa relação entre “eu lanço um golpe pra te pegar confiando que você vai saber sair, enquanto você sai mesmo confiando que eu não vou te acertar”. Nessa estranha relação existe uma linha sensível entre você provocar algo que vai surpreender a(o) outra(o), mas dentro de um limite específico onde se respeita até onde essa pessoa pode ir e vice-versa.
Para isso é necessário uma escuta profunda e uma certa leitura social. Saber até quanto você pode provocar a outra pessoa ao ponto de idealmente abrir uma reação que desenvolva o jogo, que se aprenda, que surpreenda ambos e se crie algo novo a partir daquele momento compartilhado entre dois capoeiristas. Em geral, o objetivo da capoeira não é derrotar a(o) outra(o), até porque não tem vencedor(a). Mas, como diz meu mestre, “depende”. Tem de tudo. Na subjetividade da capoeira, uma diversidade de entendimentos coexistem e pode se esperar de tudo.
O meu ponto é que a escuta silenciosa desse jogo corporal é a chave fundamental para se entender até onde você pode ir, quando ir, quando não ir, e a “resposta” a cada ação.
Isso tudo faz parte de uma “autoescuta” que vai além de escutar o(a) outro(a) e se permitir ser provocado. A partir dessa relação sobressai um autoconhecimento dos seus próprios limites. Não é apenas o limite de até onde eu “consigo” ou do que eu “sei”, mas também do limite de “até onde eu posso provocar a outra pessoa (ou ser provocado) para que se evolua uma cooperação” ou “até onde a minha ação vai provocar um diálogo que eu não vou poder sustentar”.
Se “autoescutar” começa muito antes do jogo, e sim, desde aquela sensação de como eu acordei no dia daquela roda, como está o ambiente, quem está presente, o que o meu corpo ou as minhas sensações me dizem durante a roda, como meu corpo (meu espírito) sai da roda, quais são as condições diárias do meu corpo e das minhas emoções e muito mais.
Existem muitas formas de escutar
Há momentos que você apenas ouve para aprender ou para dar espaço para quem precisa “falar”, há momentos em que você pergunta para abrir uma escuta, ou outros em que você precisa provocar uma resposta. Tudo isso ocorre no jogo, na roda, onde a principal base é a música. A música na capoeira é “como o oceano para os peixes”. Em que cada toque, canto, ritmo e letra guia um certo código de comportamento ou ponto de atenção e portanto ter um ouvido minimamente sensível e atento é essencial.
Fico fascinado pelo potencial que a capoeira tem, não só pelo seu alcance geográfico, por exemplo, mas o quanto ela ainda pode proporcionar para ajudar a transformação das pessoas e do mundo. Porém, nem sempre essas diferentes “escutas” profundas acontecem conscientemente e muitas vezes, como reflexo do mundo, os cerceamentos das liberdades individuais, as divisões de grupos e os desafios de poderes atravessam a capoeira e impedem uma escuta mais integradora para ser ainda mais transformadora.
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Fico muito feliz em ler seu texto! Sintetizou muitas coisas em poucas linhas. A capoeira é uma prática transformadora e depende das pessoas que a praticam para que alcance todo o seu potencial. Podendo libertar e unir, mas também oprimir e dividir as pessoas. Consciência e sentido são fundamentais para esse processo.
Adorei a reflexão!