Arte e literatura como cuidado à memória.
#TeIndicoUmLivro: Macabéa: A Flor de Mulungu, Conceição Evaristo
Trabalhei por muitos anos como produtora cultural na Orquestra Sinfônica da Bahia. Em muitos momentos essa função estratégica se confundia com o verbo cuidar. Durante o exercício da profissão, era preciso zelar pelo bem estar, segurança e bom relacionamento com 80 músicos, fornecedores, instituições, equipe, público, além da principal atribuição que era criar as condições ideais para uma apresentação musical. Naturalmente, essa ação de garantir cuidado, gera um efeito colateral, que é o de deixar de cuidar de si.
Embora sempre me perguntasse: "quem cuida de quem cuida?" Nunca obtive muito sucesso na resposta. Mas como havia de ter, não é mesmo? Se, afinal, a incidência dessas queixas giram em torno de tantas questões estruturais relacionadas à tornar-se mulher.
Bom, diante desse panorama inicial, eu poderia abordar o tema do cuidado por meio de diversas lentes, mas escolho falar nesse texto sobre o cuidado à memória.
Em 1977, Clarice Lispector publicou o livro A Hora da Estrela, seu último romance. Nele, a escritora nos convida a mergulhar na vida de Macabéa, uma jovem nordestina que migra para o Rio de Janeiro em busca de uma vida melhor.
Órfã, pobre e com pouca instrução, ela enfrenta as dificuldades da vida na metrópole, dividindo um quarto com outras migrantes e trabalhando como datilógrafa em um escritório precário.
Macabéa, com sua timidez e ingenuidade, se sente deslocada e solitária em meio à multidão urbana. Seus sonhos e desejos se chocam com a dura realidade, marcada pela pobreza, solidão e falta de oportunidades. A personagem busca refúgio em fantasias e superstições e cria um mundo particular para escapar da dura realidade. Por fim, Macabéa, como diversas pessoas em situação de migração, tem um final trágico.
De acordo com a própria autora, uma obra que se diz inacabada deixa brechas para questionamentos, como: Quem foi Macabéa antes de ir para o Rio de Janeiro? O que fazia? Quais eram suas habilidades?
Fazer uma releitura da obra de Macabéa, trazendo mais texturas à personagem e possíveis respostas é o que se propõe Conceição Evaristo em Macabéa: A Flor de Mulungu, livro publicado inicialmente na coleção “Extratextos 1 - Clarice Lispector: personagens reescritos”, pela Oficina Raquel e lançado em 2023 com ilustrações belíssimas de Luciana Nabuco.
Em Macabéa: A Flor de Mulungu, Conceição Evaristo volta no tempo até o momento em que a personagem tem 15 anos. Ao reviver seu passado, lhe atribui uma subjetividade, que vai além das características de ser migrante, nordestina, pobre e isolada.
Neste novo enredo, ela é reconhecida em sua cidadezinha por sua capacidade de atuar em diversas frentes do cuidado. Como cerzideira, remenda aquilo que está esgarçado. Como parteira, ampara as vidas que chegam ao mundo e como cuidadora de pessoas, manipula ervas e prepara garrafadas que atendiam uma infinidade de males. Vejamos uma passagem do livro:
“De todas as funções exercidas, o ato de cerzir era o que mais seduzia a moça. E de todas as peças, as que vinham sempre em abundância para a cerzideira, eram lenços. Noite e dia. Alguns chegavam tão puidinhos, tão enfraquecidos e com os fios tão visivelmente rompidos, que não passavam de molambos pendentes à morte, ao esquecimento. Para esses então, o afazer da moça não se resumia somente em restaurar os fios esgarçados. Era tudo o mais. Tratava-se de recompor, de devolver a vida que ali existiu“.
Em entrevista sobre esse livro, ao Canal Arte 1, Conceição dirá: “A literatura é uma forma de vingar a morte. Então quando eu mato os meus personagens simbolicamente, são personagens que morrem denunciando essa impossibilidade de vida, que morrem reivindicando o direito à vida”.
A autora mais uma vez, segue com maestria nesse propósito de atribuir sentido a uma existência que poderia simplesmente estar reduzida aos problemas oriundos, em sua grande sua maioria, por questões sociais. A história de Macabéa entrelaçada de maneira coletiva, ecoa também na voz de muitas mulheres iguais a ela. Pois “só a flor de mulungu, nessa precária ocasião, oferece o mel de suas flores, às famintas aves, que pousam sobre ela”.
Esse cuidado à memória ancestral e as histórias de vida que, mesmo quando trágicas, reivindica um lugar de existência em prol de um mundo justo e igualitário, muito bem articulado por Conceição Evaristo através do seu conceito de escrevivências, me despertou a lembrança de uma metodologia que estudei certa vez, chamada Tecnologia Social da Memória, criada pelo Museu da Pessoa, um espaço virtual e colaborativo, que transforma histórias de vida em patrimônio da humanidade com o objetivo de mudar nosso jeito de ver o mundo.
Através do conceito de escrevivência e de iniciativas que visam valorizar a memória individual e coletiva, ampliamos as ferramentas para enfrentar os problemas globais e construir um mundo mais humano, diverso e solidário.
Convido você a ler Macabéa: Flor de Mulungu, a revisitar A Hora da Estrela ou conhecer o Museu da Pessoa. De antemão, garanto que não irá se arrepender e também adoraria ouvir suas reflexões a respeito do cuidado e da memória.
Será um prazer engrossar o caldo desse feijão.
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