Confesso que, assim como a Bruna Próspero, na coluna de abertura dessa travessia, eu também lembrei de Raul Seixas quando recebi o tema do bimestre, mais especificamente da música S.O.S. Em meio ao descontentamento com a violência no jornal atrapalhando a normalidade do domingo, o eu lírico na música tenta tranquilamente uma transmutação. E essa canção, que completou 50 anos, não poderia ser mais atual, só que ao contrário: quem pode, ao invés de clamar pela chegada do moço do disco voador, planeja as próprias naves para ir embora daqui.
O escapismo, como diz Joanna Macy, é uma evidência da nossa dor pelo mundo. Quando bloqueamos as nossas respostas internas àquilo que nos perturba somos carregados pela apatia e negação. Tentamos aliviar o sofrimento com pequenas doses de transmutação, buscando novas distrações e curas individuais suspeitas para um grande problema coletivo.
A teoria biológica da mudança trata exatamente da habilidade dos organismos de responder ao sofrimento. Para o cientista James Shapiro (Evolution: A View from the 21st Century), a questão fundamental da evolução não é a seleção natural, mas a inovação. Sem variação e novidade, a seleção não tem sobre o que agir. Isso significa que as transformações nos organismos não acontecem ao acaso. Existe uma engenharia genética natural que confere às células vivas a capacidade de alterar os próprios genes e adquirir novas funções para aumentar as chances de sobrevivência quando o ambiente exige.
É como se algo estivesse sempre em movimento dentro e fora de nós e fossemos acertando o passo na dança evolutiva. Agora, uma transição gigantesca está em curso no nosso planeta. Se tivermos a capacidade de aceitar e não desviar o olhar, seremos capazes de grandes e incríveis transformações internas e externas. Talvez nos inspire saber que essa mesma jornada já foi empreendida por outras espécies com sucesso.
Formigas que trafegam sem porque?
Não me surpreendeu que, após uma chuva de 40 mm em uma única tarde, as formigas aqui do quintal logo abriram dois novos buracos na grama em poucos dias. Pude reparar que ao cavar suas galerias, esses pequenos animais sobem grão por grão de terra até a superfície. Parece um trabalho tão demorado! Ao mesmo tempo elas são muito organizadas e diligentes. Mas o que é uma chuva pesada para um ser que sobreviveu a um meteoro?
Um estudo feito por pesquisadores brasileiros descobriu que foi depois do impacto do asteroide que dizimou os dinossauros, que as formigas aprenderam a cultivar as suas roças de fungos. Sem a luz do sol, encoberta por vários anos pela poeira na atmosfera, as plantas começaram a morrer tornando escasso esse recurso alimentar explorado pelas formigas. Outro alimento que era aproveitado ocasionalmente passou a ser a principal fonte de nutrição. Foi assim, que milhões de anos antes dos humanos, as formigas inventaram a agricultura, cultivando fungos em suas tocas subterrâneas e até alterando o desenvolvimento das espécies utilizadas para produzir determinados nutrientes.
A cigarra aprende a cantar
Outro inseto mais antigo que sobreviveu não só ao impacto do meteoro, mas testemunhou a cisão da Pangeia, grandes erupções vulcânicas, eventos extremos de temperatura e o surgimento do Oceano Atlântico, é a cigarra.
Todos os anos a primavera é marcada por uma sinfonia estridente de cigarras cujo som pode atingir até 120 decibeis - uma turbina de avião, por exemplo, alcança 110 decibeis. Dizem que elas anunciam as chuvas, mas é do calor que elas gostam. Essa preferência provavelmente remete a sua história evolutiva que começa no quente e abafado período Jurássico.
Mas naquela época as cigarras eram bem discretas. O som que elas produzem hoje acontece graças à vibração de uma membrana, o timbal, que fica no abdômen do inseto. Um estudo recente de vários fósseis do período cretáceo, mostrou que esses insetos tinham um timbal pouco desenvolvido e deveriam fazer não mais do que uma vibração no substrato. Mas porque as cigarras se adaptaram para cantar tão alto?
As cigarras passam a maior parte de suas vidas, cerca de 2 a 17 anos, alimentando-se da seiva das raízes de plantas. Elas emergem até a superfície apenas para a reprodução e vivem até três meses. É nesse momento que o canto delas chama a nossa atenção. Embora seja bastante incômodo, não é o suficiente para afastar predadores, mas é a principal forma de comunicação dos machos com as fêmeas.
Pode ser que em um ambiente devastado, quando uma paisagem de floresta foi substituída por uma fisionomia de cerrado, fosse mais difícil para as cigarras encontrarem parceiras. É possível que aquelas com a capacidade de se comunicar com mais eficiência conseguiram perpetuar a espécie e transmitir essa habilidade para as gerações seguintes.
As mensagens que nos chegam sem parar
Se tem uma coisa que tanto as formigas quanto as cigarras sabem bem, é que viver em contato íntimo com a terra pode ser mais importante do que voar pelos céus. Até mesmo os ancestrais das formigas, que eram um tipo de vespa, perderam as suas asas para viver em comunidades no solo.
Hoje em dia, a quantidade de distrações que mantém a nossa atenção flutuando e a busca por soluções definitivas são obstáculos que nos impedem de viver esse momento de grandes mudanças com criatividade e um senso de aventura que pode nos sustentar no futuro.
Como diz Joanna Macy:
“Quando você faz as pazes com a incerteza, você encontra uma espécie de emancipação. Você se liberta de resistir a cada má notícia e de ter que se esforçar para ter esperança e agir. Apenas vamos em frente, porque a vida quer viver através de nós”.
Saber como aterrar é a principal ferramenta para atravessar o inevitável colapso, a grande mudança. Não podemos saber se a nossa espécie terá sucesso, é melhor não nos agarrar a isso, pois nunca há garantias. Mas é assim que as nossas respostas criativas são acionadas: viver é aprender. Vamos deixar que a vida aprenda através de nós. Seguimos na travessia.
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