Vamos falar de relações raciais?
Crônicas para debater o antirracismo, Cidinha da Silva | #TeIndicoUmLivro
O verbo transitivo “plantar” evoca duas conotações básicas:
1. transitivo direto: introduzir na terra semente, muda etc. de (espécie vegetal), para que enraíze e se desenvolva."p. árvores, flores" 2. transitivo direto e intransitivo: fazer o cultivo de; semear."plantavam trigo para sobreviver"
A origem do latim da palavra, 'planto', que significa 'pranto', sugere uma interessante dualidade: o ato de plantar, que representa esperança e futuro, nasce da dor e da perda. Talvez, seja essa contradição que torna a agricultura um ato tão fundamental para a nossa espécie, o ato de cultivar a terra é uma forma de lidar com o sofrimento e transformar a morte em vida. Como diria o mestre Gilberto Gil:
“tem que morrer pra germinar, plantar n’algum lugar, ressuscitar no chão”
Bom, ao mesmo tempo, cada cultura atribui ao ato de plantar significados únicos, moldados por suas histórias, crenças e desafios. Para alguns, plantar é um ato de resistência, uma afirmação da vida diante da adversidade. Para outros, é um ritual sagrado, uma conexão com os ancestrais e com a terra.
No mundo contemporâneo, marcado por crises ecológicas e sociais, a ação de plantar adquire outras conotações possíveis. Ao plantar, plantamos sementes de mudança, que podem florescer em um futuro mais promissor para todas as pessoas.
Partindo desse sentido figurado e político da palavra, vamos falar nesse texto sobre a obra de Cidinha da Silva, em especial, sobre seu mais recente livro “Vamos falar de relações raciais? Crônicas para debater o antirracismo”, lançado pela editora autêntica em 2024.
Cidinha da Silva nasceu em Belo Horizonte/MG em 1967, é doutora, escritora e editora na Kuanza Produções. Publicou 21 livros, compostos pelos gêneros crônica, conto, ensaio, dramaturgia e infantojuvenis, alguns desses títulos integram o Programa Nacional de Livro Didático (PNLD) e estão nos acervos de escolas públicas e bibliotecas comunitárias do Brasil.
Através do seu comprometimento com a difusão de conhecimento por meio do livro e da leitura, a autora tem cultivado a criação de novos imaginários e produção de inifinitos na cabeça de crianças, jovens e adultos negros do Brasil.
O PNLD é uma importante política pública do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) que democratiza o acesso à literatura, levando livros para escolas públicas e fomentando a leitura no país. O programa visa formar acervos ao disponibilizar obras didáticas, pedagógicas e literárias em escolas públicas brasileiras. Cabe salientar, que o processo de seleção dos livros passa por uma avaliação rigorosa, que inclui a produção de uma enxoval de suportes pedagógicos, como manual do professor, vídeos e recursos acessíveis à pessoas com deficiência visual e surdas.
Para escrever esse texto, ouvi alguns podcasts que tinha Cidinha da Silva como convidada. Com uma fala sempre muito contundente, não costuma deixar brechas para entendimentos genéricos ou más interpretações, sua posição é sempre muito bem demarcada e até onde me cabe analisar, quase nunca é possível perceber algum tipo de tentativa de agradar. Confesso que me encantei também por suas falas inspiradoras e espirituosas, recheando a vida de sentido.
A clareza com que fala e escreve sobre o racismo estrutural apazigua o coração de quem vive uma vida marcada pelo mito da democracia racial, que reduz a experiência das pessoas negras ao supor que existe uma harmonia entre as raças, dissimulando as violências ocasionadas pela discriminacao racial.
(Se você tiver dificuldade ou curiosidade com algum desses termos, pode consultar a Plataforma Ancestralidades, que faz o esforço de publicizar verbetes com termos e conceitos relevantes sobre a temática étnico-racial no Brasil)
No livro, “Vamos falar de relações raciais? Crônicas para debater o antirracismo” Cidinha faz um retrato da sociedade contemporânea através de crônicas, nos atualizando sobre alguns assuntos, ampliando nossos horizontes sobre outros e registrando na escrita casos de violência racial e racismo que poderiam ser facilmente esquecidos.
O que estou chamando de livro-dispositivo, convida a pessoa leitora ou professora, a utilizar de recursos tecnológicos para aprofundar nos conhecimentos abordados, facilitando a produção de novas narrativas e reflexão por meio do estímulo à pesquisa experimental.
O celular, aparelho quase indispensável nos tempos atuais, é ativado enquanto recurso que passamos a usar em prol da melhoria da nossa comunidade. Ampliando a possibilidade de tecer novos diálogos, para além das convencionais redes sociais.
Convido você pessoa leitora, jovem, adulto ou educador a conhecer esse livro.
E para saber mais sobre como Cidinha da Silva tem semeado e cultivado a criação de novos imaginários na população negra brasileira, te convido a ler a entrevista que a autora gentilmente me concedeu, falando sobre os impactos das suas obras no Programa Nacional de Livro Didático.
Quais dos seus livros compõem os acervos das escolas públicas brasileiras pela PNLD?
Cidinha:
1 - Os nove pentes d’África (novela, Mazza Edições) – PNLD Literário 2020
2 – Oh, margem! Reinventa os rios! (crônicas, Oficina Raquel) – PNLD Literário 2021
3 – Um exu em Nova York (contos, Pallas) – PNLD Literário 2021. O livro foi censurado por apoiadores do Governo Bolsonaro depois de aprovado em todas as etapas. As escolas foram impedidas de escolhê-lo porque os bolsonaristas, de maneira arbitrária e autoritária, o tiraram do site do FNDE e da lista de escolha enviada às escolas de todo o país.
4 – O mar de Manu (infantil, Autêntica) – PNLD 2023
A inclusão de suas obras no PNLD certamente ampliou o alcance de sua literatura. Como você avalia o impacto dessa distribuição na formação de novos leitores e na promoção da leitura no Brasil?"
Cidinha: Inicialmente, cumpre dizer que me sinto honrada e muito alegre por figurar nas estantes das bibliotecas escolares e salas de leitura ao lado dos clássicos e autorias canônicas da literatura brasileira, de constar como opção de leitura para docentes e estudantes. Então, o primeiro impacto é verificável em mim, na minha realização como escritora. Quanto ao impacto na formação de novos leitores, torço para que meus livros exerçam sobre os estudantes, força similar a que os livros que escolhi ler quando tinha a idade deles, exerceram em mim.
Minha contribuição possível é escrever bons livros, colocá-los para jogo nas editoras, cobrar que eles sejam incluídos na concorrência dos editais governamentais de aquisição de livros para formação de acervos escolares. Esse é meu papel, oferecer boas obras que atraiam a atenção do público leitor. Outra parte do trabalho é feita por quem educa e faz mediação de leitura.
Você consegue mensurar o impacto dessa distribuição, do ponto de vista quantitativo e qualitativo, pode compartilhar esses dados ou comentar a respeito?
Cidinha: “Os nove pentes d’África ” tem cerca de 200 mil exemplares espalhados pelas escolas brasileiras. “Oh, margem! Reinventa os rios! , selecionado para o Ensino Médio, tem números bem mais modestos, cerca de 15 mil cópias. “Um exu em Nova York”, como já disse, ganhou, mas não levou, ou seja, em função da censura dos bolsonaristas encrustados no FNDE, ele não foi apresentado como uma possibilidade de escolha para as escolas. O PNLD 2023, no qual “O mar de Manu ” foi aprovado, ainda está em processamento, não temos números. Minha meta pessoal, entretanto, é alcançar meio milhão de exemplares demandados pelas escolas e bibliotecas comunitárias, que agora também poderão escolher livros para seus acervos. Estou trabalhando para atingir esse objetivo.
Você tem recebido feedbacks de professores e estudantes sobre como seus livros estão sendo utilizados em sala de aula? Poderia compartilhar alguma experiência marcante que demonstre o impacto das suas obras na vida dos jovens?
Cidinha: Sim, recebo notícias constantes via Instagram, fotos e filmagens de trabalhos escolares desenvolvidos a partir de “Os nove pentes d’África ”, que foi escolhido para crianças dos sextos e sétimos anos. Todos os trabalhos são marcantes para mim. Eles têm configurado pequenos e significativos retratos do gosto das crianças por uma leitura que as conecta com afetos familiares, que nos fundamentam e dão contornos para a vida. Quanto à mensuração de impactos dos meus livros na vida de quem me lê, me parece uma questão mais adequada à recepção.