Sonhei que éramos livres
#PraLerNaRede antes de cair na folia (ou no descanso)| travessia #11
Eu tenho prestado muita atenção nos meus sonhos.
Fiquei tempo demais sem eles e a sensação é de que fiquei também sem ter papos mais profundos comigo mesma. É que desde que minha filha nasceu, minhas madrugadas foram dedicadas a alimentá-la, acalmá-la e sobretudo a ensiná-la a sonhar. Parei de sonhar para que minha filha pudesse. É tão poético quanto compulsório. Quem já criou um ser humano sabe.
O sono dos bebês é entrecortado. Dormir bem é algo que não se nasce sabendo. Devo ter ficado umas 900 noites sem visitar a fase REM do sono. Graças a neurociência, hoje sabemos que é nessa condição fisiológica que somos capazes de criar filmes épicos, com cenas, símbolos e personagens gravados no baú do nosso inconsciente. No sonho, somos diretores e espectadores na sessão corujão do anfiteatro cérebro.
Fato é que há alguns meses tenho retomado a oportunidade incrível que é ter acesso aos meus desejos mais profundos e escondidos. Pensa um baú que precisava de faxina urgentemente?! O meu!
Outro dia sonhei que um grupo de amigos meus decidia viver uma experiência radical de amor livre. Era menos parecido com a orgia que seus pensamentos lúcidos possam querer imaginar, mas uma nova normalidade afetiva em que as fronteiras dos casais convencionais eram diluídas na espontaneidade de abraços longos, beijos despretensiosos cheios de libido e um distensionamento dos ambientes ao som de riso solto. A amizade real, que existe na vigília, era a mesma, só que atualizada a partir da descoberta de que a intimidade estava funcionando como uma medicina da alma.
A amiga que me revelou o segredo do grupo no sonho, fez o convite para que eu me integrasse à dinâmica, que eu aceitei com algum estranhamento inicial. Vivi, em sonho, a sensação dos meus preconceitos e os vi dissolver um a um. O resultado era lindo! Nessa experiência onírica, não havia excesso de julgamentos e eventuais corações partidos eram cuidados com naturalidade.
Acordei com a memória impressa na pele e voltei a ela durante o dia todo, me nutrindo das sensações que me traziam e aproveitando para investigar esse presente. Foi aí que retomei a leitura de Oráculo da Noite, livro de Sidarta Ribeiro, um dos maiores estudiosos do sono e do sonho da nossa geração, responsável por uma parte significativa da revalorização deles para o que somos hoje enquanto humanidade e ao que podemos vir a ser.
Segundo ele, sonhos são verdadeiros simuladores de hipóteses, que podem nos preparar para situações ligadas aos nossos desejos e ameaças. São retrovisores da nossa história, já que memórias do passado são ingredientes centrais. Porém, são também projetores de futuro, uma vez que funcionam como enzimas para digestão de desejos profundos. E essa parte eu tenho achado instigante, porque eu sei que não estou sozinha no desejo de imaginar o que poderia ser a vida se atualizássemos a moral monogâmica.
Segui meu estudo, observando meus pensamentos nos dias que seguiram e vi emergir pensamentos estratégicos para construir aquela realidade do sonho aqui, no campo da “realidade”. Falei com amigas que ficaram interessadíssimas no assunto, e também começaram a simular situações parecidas, sonhando acordadas. Aliás, Sidarta inclusive expõe em sua obra que há uma chance de que a origem da capacidade de imaginar cenários e planejar tenha origem na habilidade de sonhar.
Eu, que durante anos, tive o planejamento socioambiental estratégico como ofício, passei do sonho do amor livre a um outro sonho.
Imaginei o que poderíamos realizar como sociedade se sonhássemos coletivamente. Com quem você tem sonhado? Essa pergunta ressoou em mim trazendo o conforto de estar menos só.
Lembrei das conversas sobre sonhos que tive a oportunidade de ter com Davi Kopenawa, cuja cultura jamais tirou a importância do sonhar. Davi compartilha com o mundo os seus sonhos, em que se comunica com o mundo dos mortos e de onde traz profecias que se tornam seu plano de ação: o de trazer aliados para sua luta. Aprender com Davi, aliás, é uma imensa oportunidade. Ele é da geração que assistiu seu povo adoecer e morrer com as doenças levadas pela presença dos não indígenas e do garimpo. E, ainda assim, mantém a paciência de explicar sua visão de mundo, seus sonhos e pesadelos. Eu nunca vi alguém ter tanto poder de coletivizar.
Suspeito que tenha a ver com os alicerces da sua cultura: para os Yanomami, como diz Hanna Limulja, "o que é vivido em sonho é tão importante quanto o que é vivido em vigília. Para falar do sonho, eles usam um tempo verbal que indica que aquele que fala viveu realmente a experiência narrada."
Eu sonhei que éramos livres e agora quero sonhar com uma Terra Yanomami sem os barulhos das máquinas do garimpo.
Quero acordar e contar às amigas o que vivi nesse mundo tutorial, como escreveu Sidarta, em que podemos "testar estratégias essenciais à sua sobrevivência sem correr riscos reais”.
O que aconteceria com nossas mentes se pudéssemos afrouxar a crítica e a censura e nos imaginar capazes de sanear nossos esgotos, alimentar quem tem fome e substituir a compactação do solo dos pastos e campos de soja por lavouras biodiversas, cheias do que queremos comer? Alimento saudável, sem sofrimento, água pura correndo nos rios.
O sonho da Terra é uma metamorfose, escreveu Ailton Krenak:
"O que é pedra vira borboleta, o que é pau vira vento, o que é vapor vira chuva, as nuvens despencam em tempestade. Toda essa fantástica movimentação da vida é o sonho da Terra."
Seria mesmo a cara da Terra fazer uma descrição assim de seu sonho. Me lembrei de quando escutei a música "A Banda" de Chico Buarque pela primeira vez e em minha mente de criança, especialista em fazer fábulas, desenhei diante de mim todo o movimento da música, incluindo o homem velho, a moça feia e a lua que vivia escondida.
Aliás, o que é carnaval se não uma grande simulação corporificada dos nossos desejos coletivos? Esse ano vamos ter Yanomami na Sapucaí, ou traduzindo das línguas originárias, teremos Ser Humano na Avenida do Rio Grita! Então que sonhe o Rio e todos os seus navegantes! E que no dia seguinte, criem planos para juntarem-se ao Davi e segurarem o céu sobre nossas cabeças!
Bom carnaval!
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