Já era quase noite e nos preparávamos para a cerimônia - eu pintava a Awavãna em meu rosto com tinta de urucum, que é o desenho da borboleta, para o povo indígena Yawanawá, da amazônia Acreana. Já estávamos todos sentados em círculo ao redor do fogo, foi quando senti meu corpo desintegrar - já não era mais possível sentar ou fazer alguma resistência muscular. Decidi ir lá fora e encontrei um espaço para deitar.
Gelatinoso, foi como começou. Meu corpo já era líquido e desfeito, mas não líquido ao ponto de espalhar. Existia uma contenção. Eu era um líquido em um lugar compacto. Onde eu estava? Deitada em posição de múmia, respirando por uma fresta dentro de mim, existia uma certa sensação confortante em me desmanchar.
Ali fiquei. A lagarta entrando no casulo.
“Foi pintar a borboleta no rosto… e virou lagarta”
Foi a mensagem que restou do meu inconsciente aquele momento.
Ali fiquei por algumas horas. Até que fui capaz de ir retornando, me levantando, e a cerimônia já chegava pela metade.
Pensei:
“Agora vou poder ir para a segunda fase, até amanhecer vou criar asas e tudo isso vai passar.”
Acontece que a noite correu, o dia clareou, e eu permaneci lagarta. Fui embora para a casa, para a vida… Passaram-se meses e continuei lagarta encasulada.
Foi apenas um ano depois dessa experiência que eu, aparentemente, percebi estar saindo do casulo, junto comigo saíram projetos, artes e sonhos a serem realizados. Não sei em qual etapa de uma Awavãna estou agora, mas, provavelmente, estou considerando o voô - as borboletas assim que nascem, não voam imediatamente, ficam paradas algum tempo até que as suas asas cresçam do lado de fora.
Borboletas, escorpiões, serpentes, caranguejos, sapos… são muitos animais que podem representar o processo de transformação. E, para além do Reino Animal, também podemos observar essas mutações no Reino Vegetal - desde a mudança das árvores através das estações até a mudança da semente para o fruto.
Me parece que as transformações carregam tanto adaptabilidade quanto resiliência.
Pois bem, a “transformação” vem da necessidade interna do ser a se adaptar ao novo que se apresenta. Ás vezes, o mundo externo ao seu redor se modificou, então ele precisa se modificar também, para continuar fluindo. Mas, claro, nós humanos somos fortemente inclinados ao conforto — pois é o que o sistema nos vende como opção de vida — portanto se transformar exige sair da zona de conforto.
A aceitação de cada um ao processo de transformação é proporcional a maleabilidade em sair deste conforto. Por isso, as transformações podem, ora carregar dor, ora carregar prazer.
Se carrega dor, possivelmente é porque há muita resistência em transformar, e a natureza precisa agir com mais impacto. Isso não a torna cruel com nós mesmos, ela é quem está ali para ajudar, agindo como um espelho. Se carrega prazer, possivelmente o indivíduo já entendeu que ,em algum momento, a vida vai lhe pedir transformação e não há escapatória do ciclo da natureza — o que existe é a possibilidade de se abrir em plena confiança para o que vier. Logo, o prazer vem junto.
Essa dualidade Dor x Prazer na transformação pode ser tão simples de descrever, porém tão entremeada na prática e tão difícil discerni-la. Andam juntas como luz e sombra, e o que as une é a resiliência. Ora viveremos transformações aceitáveis, ora viveremos transformações abruptas. Está fora do nosso controle decidir qual lado da ambiguidade queremos.
Então qual seria o melhor conselho para a Transformação, se não a resiliência?
Resiliência é se reerguer depois do tornado, aceitando que o que permaneceu é bem menos do que existia antes. No dicionário Michaelis existe a seguinte definição:
Resiliência: Elasticidade que faz com que certos corpos deformados voltem a sua forma original.
Porém, essa definição não condiz com a natureza, pois nós nunca voltamos ao original. É preciso aceitar as partes perdidas, compreendendo como uma possível retirada de excessos. Ou seja, resiliência vem junto da transformação, pois ela leva embora alguns dos nossos fragmentos, nos ensinando que a nossa própria totalidade está em constante modelação.
O que seria da Terra sem transformação? Os girinos permaneceriam girinos, os ovos não eclodiriam e as sementes estariam em eterno adormecer.
Mas, o que eu considero mais incrível na exigência da natureza para que tudo se transforme, é que ela própria carrega as soluções para o “caos pré-transformativo”.
Antes das chaves virarem, o mundo ao nosso redor se entorta todo. Então, a natureza se apresenta e nos oferece uma infinidade de plantas medicinais para nos acompanhar na travessia.
Há nove anos, dedico-me ao estudo das ervas aromáticas e já testemunhei o acolhimento profundo que elas proporcionam àqueles que estão em processo de transformação. Desde a força revigorante da Artemísia, até o vigor físico do Cravo. Da capacidade de visão do Gerânio à leveza da risada da Laranja Doce, sem esquecer o luto silencioso do Cedro.
Entre as moléculas perfumadas das flores e o olhar atento ao ciclo da vida dos animais, entre casulos e asas, a natureza nos ensina generosamente que a transformação é um movimento eterno e cíclico.
💠Diálogos com almas vegetais: Transformação através dos saberes da Terra, das plantas e do corpo sensível.
Dia 28 de novembro (essa quinta-feira), às 19h, Yarimã Tlahpaliani vai conduzir uma prática para vivenciarmos as transformações a partir do corpo, da escrita e das plantas. Para esse encontro, Yarimã pede que você traga traga algum óleo essencial que tiver em casa ou prepare um chá. Através dos sentidos podemos transformar muitas histórias internas! Vai ser lindo. <3
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