Estava há quase dez anos sem comer carne e decidida a evitar ao máximo o consumo de laticínios, roupas e cremes que têm origem animal ou que fazem testes em animais. Eis que resolvi adotar uma filhote vira-lata. Uma cadela SRD (sem raça definida) que ganhou meu coração em menos de cinco minutos. Mas, ao comprar sua primeira ração, me dei conta do óbvio: vísceras de animais estariam, de novo, dentro de casa.
Respiro fundo e abro a exceção. "Afinal, ela tem necessidades biológicas diferentes da minha”, penso. Apesar de saber que existem rações feitas apenas com vegetais, ainda não tinha tido tempo de procurar uma veterinária especialista no assunto.
Até aí tudo bem… Segui o baile sem pensar muito.
Troquei os tapetinhos higiênicos descartáveis, que duram milênios para se decompor (e que também estavam alfinetando minha coerência), por um "banheiro ecológico” que manda o xixi direto para o ralo e segui com a minha consciência semi-tranquila.
O negócio pegou mesmo quando vi minha casa “invadida” por chifres de boi e de touro e orelhas de porco. Diferente da ração ultraprocessada, aqueles pedaços com cheiros e texturas me lembravam a todo momento da minha completa incoerência, de uma pessoa que não queria distinguir a vida de um cachorro com a vida de uma vaca, por exemplo.
Só de escrever isso eu sinto vergonha e me sinto uma farsa, uma pessoa contraditória, uma grande hipócrita. Mas eram só com esses subterfúgios que ela sossegava e parava de roer todas as quinas da casa ou de latir para cada ser humano que aparecesse no seu campo de visão pela janela. Aliás, ter um cachorro dentro de um apartamento minúsculo, para mim, é outra grande incoerência que resolvi abraçar.
Mas esse não é um texto sobre veganismo e cachorros em apartamento. É um texto sobre as contradições que habitam a vida de cada um de nós e como lidamos com elas.
Somos muito complexos, cheios de camadas e subjetividades. Entre os hábitos que queremos construir e que sabemos ser melhores para o mundo e o ato de agirmos dessa forma existe uma distância grande, muito maior do que gostaríamos. E as contradições que assolam a humanidade contemporânea são diversas. Conversando com amigos sobre o assunto eu ouvi de um tudo:
“Compreendo que a não-monogamia é uma prática política que faz sentido, mas na prática não consigo viver uma relação não-monogâmica”.
“Quero sair de um pensamento colonizador, mas sonho em fazer um mestrado em Portugal”.
Estou lendo sobre educação positiva, mas não paro de gritar com meu filho e impor regras hierárquicas.
Quero viver de outra forma, destruir um sistema opressor, mas não deixo de bancar esse sistema.
Isso para falar das mais corriqueiras e de, certa forma, “razoáveis”, que soam até engraçadas.
Mas existem outras contradições internas que pesam e são ainda mais complexas, como o racismo e o machismo presente em cada um de nós, por exemplo.
Para compreender um pouco melhor essas complexidades humanas, convidei a Analista Clínica em Psicanálise Pós-Junguiana, Manuela Barroso, para um papo e ela prontamente aceitou.
Então, aproveita para pegar uma água, dar uma respirada e para alongar o pescoço, porque as reflexões são muitas, mas necessárias. E, antes de continuar, uma pequena provocação para você parar e pensar: qual contradição interna mais assusta você nesse momento?
Por que é tão difícil manter a coerência e por que sofremos tanto com as incoerências?
“Essa é a grande questão da humanidade”, começou a me responder Manuela. Ela continuou me explicando que essa dualidade entre aquilo que a gente deseja ser e como, de fato, agimos é a grande questão que todos querem entender, por isso aparece com tanta frequência nas sessões de terapia. Na visão da psicanálise, acredita-se que existe o inconsciente, um lugar que não conseguimos enxergar dentro da gente fisicamente, mas que no entanto movimenta as nossas ações. É nesse lugar que estão as vivências que nos causaram dor, repulsa, traumas, sentimentos reprimidos. E esse inconsciente é responsável por nos proteger, por isso ele cria um complexo de manobras e ações que muitas vezes vão na contra-mão dos nossos desejos, por medo, insegurança, falta de repertório.
Quando desejamos mudar algo muito profundo na forma como pensamos e agimos no mundo é normal que exista uma estrutura interna que queira nos proteger desse desconhecido ou que opte por um repertório já conhecido e fácil de trilhar e aceito pelos condicionamentos sociais.
Outra coisa que precisamos levar em consideração é que a forma como a gente reage ao mundo, como fazemos nossas escolhas, é muito mais emocional do que racional. E como não estamos inseridos em uma sociedade que nos ensina a lidar com as emoções, os gatilhos emocionais nos pegam desprevenidos e, de repente, estamos agindo da forma como não planejamos racionalmente - e muitas vezes, encontrando caminhos "racionais" para justificá-los. Complexo, né?
Manuela me lembra ainda que estamos em uma sociedade que não nos permite conviver com as sombras desse inconsciente. “Esses lugares do inconsciente não recebem um amparo social. Temos valores pregados, principalmente por religiões, que transformam nossas sombras em algo demoníaco, sentimos muita culpa e vergonha de falar sobre nossas incoerências.”
E aí o que acontece? A gente acaba reprimindo ou, muitas vezes, “passando um pano” para as próprias contradições como forma de proteção. Muitas vezes é mais fácil reprimir nossas angústias sobre as incoerências que reconhecemos e não mostrá-las para a sociedade.
Sem passar pano, mas olhando com afeto e coletivamente
Ter consciência sobre as próprias contradições é a única forma de conseguirmos mudar essa estrutura que nos perturba. A busca pela própria coerência é um caminho a perseguir, mesmo que não seja fácil.
Nenhuma mudança real vai acontecer em um mundo cheio de pessoas repletas de discursos, mas com poucas ações. O famoso “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço” não vai nos levar a lugar nenhum. Ou vai… para um lugar bem ruim.
Mas a linha entre a busca por essa coerência interna e ser assolado pela culpa é bem tênue.
Como a Manuela me apontou, podemos superar esse lugar de culpa pelo caminho do feminino, no sentido de irmos contra o que o patriarcado nos ensinou. Olhar para dentro, para as próprias sombras, com força, caráter, coragem e afetuosidade. Sem juízos de valor, apontamentos,competitividade ou perfeccionismo.
Outro ponto relevante é pensar sobre o tempo e o contexto que estamos inseridos. Muitas dessas nossas incoerências vêm de reconhecer que precisamos quebrar a lógica de um sistema capitalista e patriarcal. “Mas esse sistema é extremamente opressor e compreende muito bem os mecanismos internos dos seres humanos. Esse sistema sabe como instaurar a culpa e sabe como precisamos de uma máscara para nos livrarmos dessa dor e então nos vende essa máscara.” Por isso, estamos repletos de casos de greenwashing, pinkwashing, socialwashing… São campanhas de marketing que se apropriam de pautas políticas para vender mais.
Todo esse assunto me lembrou uma aula que tive em 2019, no curso de Introdução a Ecopicologia. Depois de 40 minutos em que o grupo estava apontando os erros de uma sociedade que estava escolhendo caminhos duvidosos, com hábitos que estavam matando o planeta pouco a pouco, o professor que conduzia aquela aula, Marco Aurélio Bilibio, sugeriu que falássemos das nossas próprias contradições. E depois sugeriu que abraçássemos essas incoerências.
Abraçar as próprias contradições e abrir espaço para falar sobre elas, sem cair na culpa individual nem na falácia do discurso “o mundo é assim, né? não tem o que fazer”, pode ser um caminho interessante para construímos realidades com consciência social, autorresponsabilidade e acolhimento. Aliás, a culpa e o pensamento “o mundo é assim mesmo” fazem parte daqueles mecanismos de defesa da nossa psique, como apontou Manuela.
Sair de um pensamento centralizador requer inspiração nas margens. Por isso, incluir os povos quilombolas, indígenas, das periferias, dos interiores no centro das políticas públicas e do debate é parte fundamental para buscarmos um convívio diferente. Esses novos diálogos podem nos apontar outras rotas de como podemos olhar e conviver com essas angústias e transformá-las coletivamente.
“Os caminhos são múltiplos, mas sempre com respeito, escuta, coragem e nutrição. É preciso muita coragem para olhar para as incoerências uns dos outros e não cair na competitividade, no apontamento, no julgamento”, terminou Manuela.
Que possamos sentar em roda para falar das angústias que as contradições internas nos causam. E que as travessias sejam coletivas e amorosas.
Já que a construção é coletiva e complexa. É interna e externa. E fica mais rica quando ouvimos mais e mais vozes, nas próximas semanas você vai receber na sua caixa de entrada as reflexões dos nossos colunistas sobre o assunto. Na próxima segunda-feira, dia 10 de julho,
abre a temporada com: "Viver é sustentar a contradição entre mudança e estabilidade”.E nessa travessia #8 apresentaremos a nova colunista do #TeIndicoUmLivro:
vem com uma leitura potente!Calma, que tem mais! ⬇️
💠 Coerência e consciência social
Quando temos condições e informações é esperado que consigamos fazer escolhas mais coerentes no campo do consumo, mas é preciso lucidez para não cair no julgamento de pessoas que têm outras histórias. Sempre lembro de um texto do economista Eduardo Amuri sobre o assunto. Em que em determinado momento diz assim:
"Do alto do nosso morrinho de privilégios, precisamos nos esforçar para não vestir o chapéu de juiz. Se você pode comprar orgânico, ótimo. Se você pode comprar bonecas artesanais para dar de presente de natal, ótimo. Se você pode comprar barra de chocolate vegano por 15 pilas, ótimo também. Nada disso é ruim.
O que não dá é pra soltar algo assim:
"nossa, um absurdo esses grandes varejistas venderem tanto no natal, né? esses brinquedos vêm do outro lado do mundo! Eles exploram pessoas! já dei bronca na minha empregada e estou avisando todo mundo lá no trabalho para nem passar perto!"
É difícil (e sem noção) a gente exigir de uma pessoa que precisa fazer inúmeros cortes no seu orçamento básico, que ela tome uma decisão mais embasada e que vise também as necessidades do meio ambiente. (Isso para não falar das milhões de pessoas que não tem nem saneamento básico no Brasil).
Ao invés de apontar dedos, você pode usar os seus privilégio à favor do coletivo. Não vamos sair por aí culpabilizando indivíduos (nem nós mesmos), por questões que precisam ser transformadas na estrutura política da sociedade, combinado?
Leia o texto completo aqui.
💠 Quando a meditação vai na contra-mão da sua essência e aumenta o egoísmo
Quer contradição mais profunda do que essa?
traz reflexões importantes sobre o assunto no texto abaixo:💠Veganismo popular inspirado na reforma agrária e com a consciência de classe no centro da luta
Já que o texto começou com pensamentos sobre o veganismo, vale um texto sobre veganismo popular que se mostra muito coerente. Leia aqui a matéria escrito por Eduardo Sá e publicada pelo Portal Mídia Ninja.
💠Sobre as idealizações do amar e o que o corpo pode sentir…
“Dia desses um amigo me disse que eu sou a pessoa que mais defende a não-monogamia, mas a mais distante de praticá-la.”
Reflexões de Bárbara Conceição sobre esse tema tão complexo que são as formas de amar.
💠Contradições que formam a identidade brasileira
Na quinta entrevista da série UM BRASIL e BRASA EuroLeads – um novo olhar sobre o Brasil, Rita Von Hunty avalia diversas contradições que compõem o Brasil como sociedade, tal qual a busca por reconhecimento como “país do carnaval”, ao mesmo tempo que pleiteia ser uma nação cristã, conversadora, monogâmica e tradicionalista. “Contudo, são as contradições que nos interessam, é delas que a gente caminha”, destaca:
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