“Quem dera se o maior desejo dos humanos fosse dormir sem barulho”
Ao começar a ler Decolonizar é preciso, de Uribam Xavier, essa frase acima voltou a me habitar.
A sentença foi dita por Ailton Krenak, durante um encontro com Isabel Valle e Moema Viezzer, promovido pela Bambual Editora, em 2021, para o lançamento do livro Abya Yala! Genocídio, Resistência e Sobrevivência dos Povos Originários.
Krenak, com sua didática suave e provocativa, sempre nos conduz a questionar a forma como vivemos. Ele nos desafia a repensar a noção de progresso desenfreado e nos lembra, com a força de quem carrega saberes ancestrais, que nossas raízes estão profundamente entrelaçadas com a Terra. Se retornássemos a esses saberes, talvez não precisássemos de bombas, guerras ou lutas para afirmar nossa existência.
Mas, por que questionar o mundo colonial e suas promessas nos parece tão desconfortável? O que há nesse sistema que nos impede de imaginar outros modos de existir? Por que, afinal, a maior preocupação do homem branco não é ter uma boa noite de sono?
A resposta, talvez, esteja em olhar para o passado e perceber como a colonização se deu e como a colonialidade se dá até hoje.
A colonização do imaginário e do subjetivo
Uribam abre seu livro com uma citação de Eduardo Galeano, que diz assim:
"Em 12 de outubro de 1492, os nativos descobriram que eram índios, descobriram que estavam nus, descobriram que existia pecado, descobriram que deviam obediência a um rei e uma rainha de outro mundo e a um deus de outro céu, e que esse deus havia inventado a culpa e a roupa e havia mandado queimar vivo quem adorasse ao sol, à lua, à terra e à chuva que a molha."
Essa passagem resume como a colonialidade se deu: um apagamento brutal de mundos inteiros, de formas de ser, de saber e de existir. Não se trata apenas de uma invasão territorial, mas de um projeto de controle das mentes e dos corpos. A colonialidade não terminou quando os países se tornaram independentes. Ela segue viva na maneira como nos relacionamos com o conhecimento, com a natureza e até com nós mesmos.Um projeto epistemológico, que impôs um único modo de pensar, de conhecer, de existir.
A decolonialidade nos convida a desmontar essa lógica. Como podemos recuperar os saberes, as histórias e as visões que foram silenciadas?
Tudo isso me faz lembrar de Nego Bispo…
Antônio Bispo dos Santos, conhecido como Nego Bispo, era uma liderança quilombola e pensador da afrodescendência, que nos ensinou que a decolonização passa também pelo rompimento do uso da linguagem. No livro “A terra dá, a terra quer” ele traz uma passagem que ilustra o que quero dizer da melhor forma:
Quando completei dez anos, comecei a adestrar bois. Foi assim que aprendi que adestrar e colonizar são a mesma coisa. Tanto o adestrador quanto o colonizador começam por desterritorializar o ente atacado quebrando-lhe a identidade, tirando-o de sua cosmologia, distanciando-o de seus sagrados, impondo-lhe novos modos de vida e colocando-lhe outro nome. O processo de denominação é uma tentativa de apagamento de uma memória para que outra possa ser composta.
Há adestradores que batem e há adestradores que fazem carinho; há adestradores que castigam e adestradores que dão comida para viciar, mas todos são adestradores. E todo adestramento tem a mesma finalidade: fazer trabalhar ou produzir objetos de estimação e satisfação.
(..)
De modo análogo, temos pessoas adestradas para que não tenham um imaginário, para que não consigam fazer sua autogestão. Pessoas que não aprenderam a fazer nada nem aprenderam a extrair do que está feito. Pessoas atrofiadas que perambulam sem saber aonde ir.
(…)
Certa vez, fui questionado por um pesquisador de Cabo Verde:
‘Como podemos contracolonizar falando a língua do inimigo?’
E respondi: ‘Vamos pegar as palavras do inimigo que estão potentes e vamos enfraquecê-las. E vamos pegar as nossas palavras que estão enfraquecidas e vamos potencializa-las. Por exemplo, se o inimigo adora dizer desenvolvimento, nós vamos dizer que o desenvolvimento desconecta, que o desenvolvimento é uma variante da cosmofobia. Vamos dizer que a cosmofobia é um vírus pandêmico e botar para ferrar com a palavra desenvolvimento. Porque a palavra boa é envolvimento’.
Nego Bispo nos alerta para o perigo do adestramento, que ocorre não apenas pela força, mas também pelo afeto e pela sedução. A linguagem colonial molda nossa forma de pensar, e é por isso que a luta pela decolonização passa também pela ressignificação das palavras. Ele nos propõe trocar desenvolvimento por envolvimento, transporte por transfluência, colonização por contracolonização.
Não se trata apenas de uma brincadeira semântica, mas de um ato político.
Mentiram para a gente…
Cresci acreditando que o mundo era contado por uma única voz. Nos livros da escola, nos filmes que assistia, nos heróis que me ensinaram a admirar, havia um padrão: quase sempre europeu, quase sempre masculino, quase sempre branco.
A colonização fez parecer que todo conhecimento digno de valor nasceu na Europa. Mas isso é uma mentira.
Durante a pesquisa para este texto, me deparei com um TEDx da cientista Katemari Rosa, intitulado “Uma visão decolonial dos conhecimentos científicos”. Descobri que o Teorema de Pitágoras, por exemplo, não deveria se chamar assim. Antes mesmo de Pitágoras, povos egípcios, babilônios e indianos já conheciam e aplicavam essas mesmas relações matemáticas.
Katemari nos provoca: Por que não aprendemos que povos africanos fizeram grandes descobertas na matemática? E responde: Porque reconhecer essas produções, essa genialidade, é reconhecer a humanidade de pessoas negras. É retirar da Europa essa pretensa superioridade intelectual.
Se mentiram para a gente lá atrás, nosso papel agora é descortinar esses véus.
O Ocidente nos ensinou a desconfiar do que não se encaixa em sua lógica, mas a verdade é que a ciência não nasceu na Europa, a filosofia não começou com os gregos, e a arte não se limita às paredes dos museus. Quando reconhecemos isso, abrimos espaço para outras vozes, outras histórias, outros futuros.
Outras cosmovisões, outras possibilidades
Se queremos verdadeiramente decolonizar, precisamos aprender com outras cosmovisões. No pensamento africano do Ubuntu, a existência não é individualista, mas relacional: “Eu sou porque nós somos.” Para muitas tradições ameríndias, o tempo não é linear e progressivo, mas cíclico, conectado aos ritmos da Terra. No pensamento quilombola, a terra não é um bem a ser explorado, mas um ser vivo com o qual devemos nos relacionar em reciprocidade.
Mas a modernidade colonial nos ensinou a temer essas outras formas de existir. Como aponta Nego Bispo, vivemos em um mundo atravessado pela cosmofobia .
Cosmofobia:
O medo e a rejeição às cosmologias que escapam à lógica ocidental.
Nos faz desacreditar de saberes ancestrais, ridicularizar práticas espirituais que não cabem na racionalidade europeia e deslegitimar formas de vida que não estão baseadas na acumulação e no consumo.
Ao longo dos séculos, o Ocidente se colocou como modelo universal de progresso, reduzindo outras formas de existência a “atrasadas” ou “primitivas”.
Mas será que o verdadeiro atraso não está em uma civilização que destrói rios, terras e florestas em nome do crescimento infinito?
A decolonização passa por nos libertarmos dessa cosmofobia. Não se trata de romantizar o passado ou rejeitar a ciência, mas de reconhecer que há muitos mundos dentro deste mundo. Como disse Ailton Krenak, “não existe humanidade, existem humanidades”.
Talvez, ao nos abrirmos para essas outras formas de ser e estar, possamos finalmente encontrar um jeito de dormir sem barulho.
E se (re) aprendêssemos o mundo com um olhar decolonial?
Esse será o fio condutor da Travessias #18, em que vamos explorar diferentes dimensões da decolonialidade: da educação à cultura, das narrativas históricas ao nosso dia a dia. Ao longo do bimestre, traremos entrevistas, leituras, reflexões e experiências que ajudam a pensar e praticar a decolonização no cotidiano.
Além de embarcamos na primeira TRILHA DE LEITURAS COMPARTILHADAS, estudando com o professor Uribam Xavier o livro “Decolonizar é preciso”.
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