Foi muito recentemente, e vários anos após me formar em biologia, que encontrei o livro The Sense of Wonder, de Rachel Carson, a autora do célebre “Primavera Silenciosa”, que inspirou o movimento ambientalista americano. Em uma passagem do livro, ela diz:
“Aqueles que habitam, como cientistas ou leigos, entre as belezas e os mistérios da Terra, nunca estão sozinhos ou cansados da vida. Sejam quais forem os problemas ou preocupações de sua vida pessoal, seus pensamentos podem encontrar caminhos que levam ao contentamento interior e a um renovado entusiasmo na vida”.
Esse era exatamente o lugar que eu tinha desejado ocupar quando comecei a seguir a carreira acadêmica, mas essa imagem idealizada foi sendo substituída por uma realidade que eu já advinhava, embora acreditasse que fosse possível fazer diferente.
Eu me lembro da primeira vez que li sobre o movimento slow, em meados dos anos 2000, quando estava na faculdade. Acredito que foi em alguma revista impressa cujo artigo se referia ao recém lançado livro de Carl Honoré em 2004: In Praise of Slow. O livro descreve as várias formas de viver de acordo com a filosofia que promove a desaceleração da vida cotidiana. É dito que o movimento nasceu a partir de um protesto pela abertura de uma rede de fast food famosa em Roma em 1986, e que o intuito do seu fundador, Carlo Petrini, era defender a culinária tradicional local. O movimento acabou se expandindo e se desenvolvendo em uma subcultura mundial, cujo objetivo era o de frear a globalização e promover qualidade de vida nas cidades, fazendo um contraponto ao processo de aceleração dos fluxos de capital, mercadorias e informações que ameaçava modos de vida tradicionais no mundo todo.
Em seu livro, Carl cita que o movimento é “uma revolução cultural contra a noção de que mais rápido é sempre melhor” e de que “trata-se de qualidade em vez de quantidade”. Olhando assim, fica fácil de entender a sua importância quase quarenta anos depois, nos fazendo refletir sobre qual é o valor que a nossa qualidade de vida e saúde física e mental, tem para um sistema baseado numa visão econômica que deseja transformar tudo e todos em recursos lucrativos. Essa pergunta logo alcançou o meio acadêmico, aqueles que se dedicam a pensar sobre a vida e a buscar soluções para os impactos provocados pela aceleração. Em 2011, um grupo de pesquisadores alemães publicaram “O Manifesto Slow Science”, do qual gostaria de ressaltar o último parágrafo:
“Precisamos de tempo para pensar.
Precisamos de tempo para digerir. Precisamos de tempo para entender mal uns aos outros, especialmente ao promover o diálogo perdido entre as ciências humanas e as ciências naturais. Não podemos dizer continuamente o que a nossa ciência significa; ou para o que ela será boa; porque simplesmente ainda não sabemos.
A ciência precisa de tempo”.
E você pode estar aí se perguntando, como um cientista fica sem tempo para fazer aquilo que é o objetivo do seu trabalho, o pensar?
No final da década de 90, houve a implantação de um modelo de avaliação dos programas de pós-graduação brasileiros, responsáveis pela formação de mestres e doutores, tomando como parâmetros para a sua classificação, critérios quantitativos da produção acadêmica, ou seja, valorizando a quantidade de artigos científicos em detrimento da qualidade. A classificação desses programas tem relação com a destinação de verbas e de bolsas necessárias para a manutenção dos projetos de pesquisa. Esse novo modelo de avaliação acabou sujeitando pós-graduandos e docentes a uma pressão constante para buscar estratégias para que seus artigos fossem publicados rapidamente.
Desde então, o que se vê na ciência é uma corrida para estudar os temas e utilizar os métodos que estão em maior destaque no momento, como o big data, por exemplo, ou, então, a fragmentação de ideias que compõem um conhecimento aprofundado em artigos separados, gerando mais publicações. Além disso, o modelo de avaliação fomentou uma competição acirrada por recursos que acaba diminuindo a qualidade dos estudos e, o mais grave, vem impactando seriamente a saúde dos pesquisadores, levando muitos ao adoecimento. A prática acadêmica atual segue a lógica neoliberal, caracterizada pela sobrecarga e a intensificação e precarização do trabalho; um produtivismo que não se converte em avanço do conhecimento.
Em 2018, a filósofa da ciência Isabelle Stengers lançou o livro “Uma outra ciência é possível: manifesto por uma desaceleração das ciências” que foi traduzido e publicado em língua portuguesa no ano passado. Isabelle diz que “desacelerar significa questionar o ideal de cientificidade que legitima a rapidez e tentar fazer com que os próprios cientistas sintam a violência e a ignorância da qual acabam tomando partido”. Para ela, não há outro modo de promover uma mudança que não passe pelo ativismo e sugere que os cientistas devem inventar as suas próprias maneiras de resistir à necessidade de aceitar as regras do jogo ou serem excluídos dele.
Essa resistência passa pela necessidade de questionamento profundo sobre o tipo de ciência que se quer fazer e o que significa ser um bom pesquisador. Isabelle cita o exemplo das primeiras primatólogas que inventaram uma primatologia lenta, se deixando afetar pelos animais com os quais trabalhavam, investigando com eles, se adequando à vida desses animais ao invés de se colocarem como autoridade.
Se deixar afetar pelo objeto de estudo e não pelo impacto das publicações é, para mim, a forma mais bonita de fazer ciência, remete ao sentido do maravilhamento que Rachel Carson celebra.
Para encerrar, quero citar a famosa primatologista, Jane Goodall, resumindo o que vejo hoje como o papel mais importante de um pesquisador:
“Somente se entendermos, poderemos nos importar. Somente se nos importarmos, poderemos ajudar. Somente se ajudarmos, seremos salvos."
A Travessias Revista Digital ganhou uma versão impressa reunindo alguns textos já publicados. ♥️
Ela será enviada para todos que fazem parte da Comunidade Travessias.
Quer apoiar nosso trabalho e fazer parte de uma comunidade de trocas mais profundas sobre os temas bimestrais? Então,faça parte da Comunidade Travessias. Nela, além de receber os conteúdos abertos como esse e-mail, você também terá acesso a conteúdos, experiências e descontos exclusivos. Veja alguns bônus:
Revista Travessias Impressa na sua casa (edição 1);
1 texto exclusivo por bimestre, escrito por uma pessoa convidada especial;
Mergulho - sugestões de práticas para aprofundamento dos temas da Travessia;
1 Encontro online com os membros da comunidade;
Desconto de 35% em todo catálogo da Bambual Editora;
Desconto exclusivo em produtos e serviços com uma nova parceria comercial a cada bimestre.
Mude sua assinatura para a versão paga e faça parte da comunidade automaticamente:
Assinatura mensal: R$29,90
Assinatura anual: R$ 287,00
A beleza da ciência está em descobrir. Entretanto, a sociedade transformou essa capacidade em mercadoria também.