A escrita que me interessa é muito mais parecida com uma agrofloresta do que com uma implacável monocultura de soja.
Antes de contar mais sobre essa frase que venho declarando aos sete ventos, quero te convidar para pensar comigo sobre as transformações que as plantas tiveram no imaginário do ser humano ocidental e em como isso se refletiu na literatura.
Sim, somos a espécie que inventou o termo “estado vegetativo”, mas também somos aquela que pode se nomear enquanto “guardiã de sementes”. E essas nossas contradições também estão nos nossos textos, em tudo que a gente cria e poliniza. Por isso, hoje, em um mundo em emergência climática, gosto de perguntar:
O que escritores poderiam aprender com as plantas, se olhassem para elas com autonomia existencial, inteligência e sensibilidade?
Esse tipo de exercício de alteridade vem transformando o pensamento moderno ocidental sobre o mundo vegetal, inclusive no meio literário. Se antes os elementos botânicos eram ornamentais e pontuais para a narrativas, e as florestas e campos eram meras paisagens bucólicas e figurativas, hoje as plantas têm expressões significativas nas narrativas e poéticas dos textos.
“Sou uma árvore que arde com duro prazer.” (Clarice Lispector)
Pela minha experiência pessoal, vejo também que hoje as plantas podem, inclusive, ser fundamentais nos processos de escrita criativa. Mas, para isso, precisamos nos entregar um pouco mais e sujar as mãos de terra, isto é, nos colocar em relação.
Tenho pesquisado nas experiências que ofereço no Projeto
o que acontece na escrita quando antes de olhar a planta, a gente experimenta adubar, plantar, regar, manejar sua existência ao lado de outras vidas, de sua e outras espécies, e para minha alegria estou vendo brotar um universo biodiverso de possibilidades.Convido você a adentrar este texto como quem caminha por uma mata ou um pequeno jardim (porque nas miudezas mora o mundo) para tomar um banho de floresta. Para isso, deixo uma música para te ambientar e acompanhar.
As plantas nas escritas ocidentais
Na literatura brasileira do século XX há casos marcantes das plantas nos textos, como por exemplo, o cacau em Jorge Amado, as flores em Cecília Meireles, o buriti e a flora do sertão em Guimarães Rosa, entre outros.
Já na literatura contemporânea, isso toma proporções maiores. Não quero tomar todo este espaço com exemplos, mas acho importante destacar a presença de mulheres poetas nesse olhar para o universo natural e vegetal. Vale lembrar de Adélia Prado, Adriana Lisboa, Júlia Hansen, Ana Martins Marques, entre outras.
Olhar para nossa literatura, ainda que brevemente, mostra que estamos avançando na forma como as plantas são compreendidas e surgem nos textos, embora ainda existam lacunas, como o desenvolvimento de individualidades, nomeadas, protagonistas, e não só a espécie.
“Alcachofra” (Maria Esther Maciel)
As pétalas se chamam
capítulos
e se despetalam
como páginas
de um livro
com caule e estrias
em verde-claro
e penugem lírica.
Ao mesmo tempo, também existem outras escritoras brasileiras contemporâneas que levam em consideração essas subjetividades botânicas, como por exemplo o “Manifesto de uma ervas daninha” de Anai G. Vera Britos ou os textos jornalísticos de Eliane Brum. Ambos construíram a bibliografia da oficina “Escrita Botânica: quais palavras brotam no seu inventário” facilitada pelo na Casa Planta, uma casa-laboratório agroflorestal que planta o próprio alimento integrado a circuitos curtos de distribuição de pequenos produtores.
Plantas nas escritas originárias
É necessário lembrar que os povos originários têm outra cosmovisão sobre esse tema. Ailton Krenak, Davi Kopenawa, Aline Pachamama, Daniel Munduruku, Eliane Potiguara, entre outros, são indígenas de diferentes etnias que vem mostrando uma compreensão não antropocêntrica sobre o universo vegetal.
Isso manifesta-se em suas vidas, lutas, falas e textos de forma visceral. Aqui a terra é uma entidade viva, política, espiritual e está entremeada de relações com as plantas e todos os viventes. Nela há beleza, alimento, luta, casa e companhias visíveis e invisíveis.
“As árvores da floresta e as plantas de nossas roças também não crescem sozinhas, como pensam os brancos. Nossa floresta é vasta e bela. Mas não é à toa. É seu valor de fertilidade que a faz assim. É o que chamamos de në rope. Nada cresceria sem isso. O në rope vai e vem, como um visitante, fazendo crescer a vegetação por onde passa.”
(Davi Kopenawa)
Quando entramos em contato com sua literatura oral ou escrita, percebemos que esses valores cultivados passam por uma percepção de pertencimento e parentesco, de que tudo está conectado na “natureza” (nome dado por nós, brancos ocidentais).
Os povos indígenas reverenciam e trabalham em cooperação com toda a comunidade viva da Terra. Adubam, plantam, protegem e escrevem com as florestas, como um sistema vivo, e se nos for dada a honra e capacidade de ler seus versos vivos, aprenderemos muito.
Agroflorestas nas escritas regenerativas
“Todo ser é jardineiro de outras espécies” (Emanuele Coccia)
Ao sujar as mãos de terra para adubar mais essa pesquisa sobre os processos de escrita, também tenho visto relações potentes com a Agrofloresta, uma prática milenar de cultivo de alimentos que imita a natureza, para que as plantas estejam em relações benéficas, cooperativas, sustentáveis.
Ao contrário da alastrante escrita artificial, mecânica, feita sob pressão, padrão, prazo apertado e tudo aquilo que infertiliza a nossa criatividade, a escrita agroflorestal trabalha na regeneração da terra da escrita para a criatividade nascer com saúde.
Em outras palavras, mais do que pensar na presença poética ou representativa das plantas nas narrativas, tenho percebido a necessidade de agroflorestar a escrita, isto é, nos libertar das monoculturas seriadas, gigantes e disciplinadas que intoxicam a vida em sua expressão mais genuína, e passar a regenerar a nossa escrita.
Essa é a quarta das quatro principais linhas de ação do
, projeto que investiga e oferece práticas de escrita enquanto fonte de regeneração para: 1) si; 2) suas relações; 3) a coletividade viva da Terra; e 4) a própria escrita enquanto gesto.Seguindo essa linha, se olharmos para algumas das principais características de um cultivo agroflorestal, colheremos algumas ótimas inspirações para o processo criativo.
Preparar o solo:
No plantio agroflorestal é muito importante nutrir e preparar o solo para o plantio, seja por meio de cobertura vegetal, adubo ou com plantas pioneiras que fixam nutrientes específicos na terra.
Para escrever também é fundamental essa preparação. Destaco aqui a nutrição através da leitura, pesquisas e de diferentes linguagens artísticas.
Espécies companheiras:
Os componentes agroflorestais devem se auxiliar mutuamente, isto é, são usadas plantas companheiras que têm uma interação positiva.
Da mesma forma que uma planta pode contar com a sombra de outra para crescer sem queimar suas folhas, nossos textos e processos criativos também podem ser potencializados quando estão na companhia de grupos de leitura ou inseridos em cursos que fomentam seu desenvolvimento e brilho.
Manejo:
Manejar a agrofloresta é muito mais do que podar. Trata-se de um acompanhamento, de um cuidado.
O mesmo vale para nossa escrita: É claro que a edição e o corte são fundamentais, mas muitas vezes trata-se mais de manter a nossa presença no gesto e de continuar nos nutrindo de referências e inspirações.
Estágios:
No plantio agroflorestal existe um planejamento em estágios que leva em consideração o tempo necessário de regeneração e crescimento das espécies dentro de suas particularidades.
Ressalto aqui a importância de respeitar o tempo de cada etapa do nosso processo criativo. Respeitar nosso tempo, nosso momento e nossa individualidade. Ninguém se torna um escritor profissional da noite para o dia.
A escrita agroflorestal, assim como poesia, literatura brasileira e dos povos originários, entre outros assuntos perfumados neste texto também fazem parte do trabalho Escritas Regenerativas. Como a gente sempre fala, é uma pesquisa viva, então ela segue crescendo organicamente com todos os corpos e textos que se aproximam de nós. Vale conferir!
Convite: para que a terra escreva com você
Agora, encerrando o seu banho de floresta, te convido a fechar os olhos por um momento para refletir sobre a seguinte pergunta:
Como eu gostaria que fosse o meu processo criativo?
Quando sair daqui, se for possível, anote tudo o que brotou por aí a partir dessa pergunta e deixe essas palavras “dormirem” na terra de um vasinho de planta da sua casa que você gosta, de preferência em um lugar onde você possa ver diariamente. Depois de acompanhar esse plantio por alguns dias (pelo tempo que for necessário para você), leia o papel novamente com a seguinte pergunta em mente:
O que eu desejo fazer para o meu processo criativo florescer?
Se quiser compartilhar sua experiência comigo aqui nos comentários, vou adorar ler!
Para agroflorestar sua escrita
O Projeto Escritas Regenerativas acaba de lançar uma Jornada de Escritas Regenerativas online. Para conhecer mais acesse a news:
Afinal, existe uma escrita não regenerativa?
Vem saber o que a
pensa sobre esse assunto: