#ParaLerNaRede - O que aprendi visitando Manaus, a floresta urbanizada
Adriano Liziero, do Geopanoramas, compartilha com a Travessias a experiência de viajar pelo Brasil para a escrita do livro "Somos Paisagem".
“Oba lá vem ela. Estou de olho nela”.
Assim começa a música de Jorge Ben Jor, que elogia a pessoa amada, “mais meiga que uma rosa”.
Em Manaus, “ela” não é um pronome usado exclusivamente para uma pessoa, com perfume de flor ou não. Também se refere a algo que está quase sempre presente na vida manauara: o substantivo comum “chuva”.
Na música de Ben, o eu lírico fica contente só em ver ela passar. Em Manaus, ela causa tanto espanto que chamá-la de chuva é um eufemismo. Pau d’água é como os manauaras denominam a precipitação, que parece cair como uma cachoeira das nuvens.
Lá vem ela, sem o “oba”, seria mais adequado no caso de Manaus. Isso porque a cidade que está no clima mais chuvoso do planeta e às margens do rio mais volumoso do mundo - o Amazonas, que se forma junto à Manaus, no encontro das águas dos rios Negro e Solimões - pasmem, tem fobia a água.
Os paus d’água alagam as ruas de uma cidade que se orgulha em ser a “Paris dos Trópicos” - apelido que ganhou nos áureos tempos do ciclo da borracha, entre o fim do século XIX e início do século XX. Naquela época, Manaus se orgulhava em ser a primeira cidade brasileira a ter energia elétrica. O Teatro Amazonas, símbolo da riqueza, era o cenário para pessoas finamente vestidas com diversas camadas de tecidos caríssimos, como se não estivessem em uma sauna úmida, como costumo definir o clima manauara para quem nunca pisou na cidade.
O calor e os paus d’água de Manaus arruinariam Paris. Mesmo assim, a cidade europeia segue sendo modelo para a floresta urbanizada. Um modelo mal copiado, diga-se de passagem. Há mais árvores em Paris do que nas ruas da cidade amazônida. Não há integração entre Manaus e a maior biodiversidade do mundo. Os contrastes são evidentes.
Manaus poderia ser transplantada para o outro lado do Atlântico, no deserto do Saara, que não seria um corpo estranho na paisagem árida. A cidade está de costas para o rio. Os igarapés, cursos d’água que cortam a cidade toda, quando não são soterrados pela especulação imobiliária, são mortos pelo esgoto ao ar livre.
Fundada em 1669, Manaus ainda não se acostumou ao clima equatorial. A chuva - ou melhor, “ela” - inviabiliza boa parte da cidade, que precisa improvisar pontes de madeira para o trânsito das pessoas. A cidade se transforma numa grande palafita improvisada, como se os paus d’água fossem tão estranhos ou raros como seriam em Paris.
A transição para uma nova paisagem
“Nessa terra árida que é Manaus, a gente tem que se contentar com tudo”. Foi o que ouvi de Dona Mulata, personagem que representa uma cafetina de um típico cabaré manauara do início do século XX, na peça teatral “Cabaré Chinelo”. Se no passado os barões dos seringais subjugavam as pessoas e a cidade aos prazeres deles, hoje quem cumpre esse papel é a especulação imobiliária.
Em nome do "progresso", Manaus ignora o rio e a floresta. Quase não vemos árvores na cidade amazônida. Os ribeirinhos e os povos originários foram empurrados para as bordas da cidade, em locais dominados pelo crime organizado e carentes de infraestruturas. Novos condomínios fechados arrancam as árvores nativas e plantam palmeiras exóticas no lugar.
As paisagens são o reflexo de quem somos. É com essa ideia que estou percorrendo o Brasil para escrever o livro "Somos Paisagem", em parceria com a Bambual Editora. Tenho encontrado paisagens enfiadas goela abaixo por quem concentra poderes políticos e econômicos e decide o futuro do lugar onde vivemos. É o caso de Manaus, mas também o caso de muitas outras cidades e espaços no Brasil.
Quais caminhos seguir para mudar essa realidade? A resposta está na comunidade. As ações individuais, embora importantes, não tem força para fazer frente a um sistema orquestrado para impor a lógica do lucro a qualquer custo. É preciso construir uma consciência coletiva sobre o nosso papel enquanto sociedade na produção das paisagens.
Quando olhamos uma paisagem a partir do alto, estamos olhando para nós mesmos - e isso compreende como nos organizamos enquanto sociedade. Deixar o destino das paisagens nas mãos da especulação imobiliária produz cidades estranhas ao seu próprio lugar. A transição para paisagens que valorizam a natureza e a solidariedade é a participação comunitária e a construção de redes, desde o fortalecimento das relações de vizinhança até a participação ativa nos espaços de tomada de decisão.
Se somos paisagem, precisamos nos reconhecer nela.
Esse texto é uma parceria entre Adriano Lizieroe Bambual Editora faz parte do #ParaLerNaRede, um texto exclusivo por bimestre escrito por uma pessoa convidada especial.https://geopanoramas.substack.com
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