Para nutrir nosso corpo, precisamos nutrir outros corpos
Travessia #15: plantar
Escrevo esse texto em meio à crise de incêndios que atinge 60% do país. Eu queria escrever algo que acalentasse, mas é inevitável que sentimentos de desesperança brotem no coração agora. Parece que plantar perdeu o sentido de nutrir. Plantamos dinheiro e ao fazê-lo ignoramos a interdependência de todos os viventes da terra, pois dinheiro é uma abstração, uma desconexão com o que realmente tem valor.
Plantar é uma dessas coisas sagradas que a humanidade aprendeu a fazer em comum acordo com as plantas. Talvez não possamos nem mesmo afirmar que plantamos, mas que somos nós mesmos plantados no território, pois os primeiros assentamentos humanos coemergiram com a habilidade de cultivar alimentos.
Lynn Margulis disse que nós gostamos de nos ver como “a forma mais evoluída de vida”, mas poderíamos certamente ceder esse lugar às plantas com flores: “Elas não têm cérebro e nem fala, mas, afinal, não precisam deles. Usam os nossos”. Não é à toa que o surgimento das plantas com flores se deu ao mesmo tempo que o dos mamíferos placentários, há 130 milhões de anos.
A vida está totalmente apoiada nestes organismos fotossintetizantes feitos de celulose e amido que compõem a maior biomassa do planeta. Quando estudamos o corpo das plantas percebemos que elas são caminhos entre a terra e o céu, verdadeiros portais entre os elementos. A água compõe de 70 a 80% dos vegetais, mas quando analisamos o seu peso seco vemos que o carbono e o oxigênio que elas absorvem do ar representam 90%. As plantas transformam leveza em corpos que agregam micélios e bactérias em torno de suas raízes, além de animais de todos os tipos em seus caules, troncos e folhas.
Como animais que somos, nosso nível de intimidade com algumas plantas também é tão grande que muitas não podem prosperar sem as nossas mãos para semeá-las. É o caso das plantas domesticadas: o milho, o trigo, o arroz e a banana, para citar algumas. Esse é um processo chamado de coevolução, uma interação tão próxima que a própria evolução de um organismo depende da evolução daquele com quem se está em relação, como uma parceria estabelecida para enfrentar juntos as pressões do ambiente.
É graças a essa relação de reciprocidade com as plantas que a espécie humana pode se expandir sobre a Terra.
Muitos povos ao redor do planeta vêm cultivando espécies vegetais importantes para a sua dieta há milênios e aprendendo com elas sobre a importância da cooperação. Davi Kopenawa diz em A Queda do Céu:
“O valor da fertilidade da floresta está na parte do solo que fica na superfície. Sai dela um sopro de vida úmido que chamamos wahari. (...) É a imagem do ancestral saúva que coloca as roças no solo da floresta. Elas pegam a fecundidade dessa umidade e as plantas que comemos crescem forte. Assim é. Os alimentos que plantamos só crescem bem onde dança a imagem da fertilidade; onde os espíritos saúva, os espíritos morcego e os espíritos tatu-canastra brincam. Quando a floresta é ruim, não há roça, dizemos que é uma floresta que virou outra”.
Ao plantar, as comunidades tradicionais reconhecem e sustentam a biodiversidade. Há uma compreensão de que as inúmeras inteligências, saberes e fazeres de outros organismos, enriquecem a vida. Os Ianomâmis sabem que morcegos e tatus são, respectivamente, dispersores de sementes e “engenheiros de ecossistemas". Embora a saúva corte as folhas de parte das plantas cultivadas e traga certo prejuízo para as roças, elas também promovem a ciclagem de nutrientes e a sua disponibilização no solo. Elas fazem isso ao cultivar suas próprias “roças” subterrâneas de fungos. Os tatus, ao cavar tocas, revolvem a terra facilitando a infiltração da água, a deposição de matéria orgânica e de sementes. Assim como as saúvas, eles acabam aumentando a distribuição de nutrientes e a diversidade do solo.
Plantando, aprendemos que para nutrir o nosso corpo precisamos antes nutrir outros corpos, observar com cuidado como tudo se apoia.
Os povos da Amazônia sabem há muito tempo que é preciso nutrir também a terra. Eles cultivam as roças na chamada “terra preta de índio”, um tipo de solo encontrado em manchas na floresta e caracterizado por sua cor escura. Essa coloração indica uma presença elevada de matéria orgânica, diferente do solo original pobre da floresta. Criado pelas comunidades pré-colombianas este solo se formou onde eram deixados restos de alimentos vegetais e animais, além de cerâmica e carvão. Sabe-se também que abriga uma alta diversidade de microrganismos, como fungos e bactérias importantes na decomposição de matéria orgânica e na fixação de carbono e nitrogênio.
Entender que o valor das coisas está nas relações que elas podem estabelecer com outras vidas ainda é algo que precisamos aprender dentro do paradigma econômico a que estamos submetidos. Derrubar florestas, degradar os solos e, consequentemente, diminuir a diversidade biológica faz parte de uma visão de mundo que trata plantas, animais e pessoas, como objetos descartáveis. Quando aliamos uma visão de cuidado mútuo, e não de exploração, ao ato sagrado de plantar, guardar sementes e conservar áreas naturais, encontramos uma forma possível de reconexão e de valorização da vida humana e mais que humana. Plantamos o futuro.
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