Os sonhos das bestas - A Primeira Assembleia do Comitê Multiespécie
Histórias Multiespécies #1
"O animal não fala, mas seu silêncio é um enigma que nos convoca."
— Le silence des bêtes, de Élisabeth de Fontenay
Histórias multiespécies
Se os animais pudessem falar, o que diriam? E mais: quem ousaria escutá-los?
"Histórias multiespécies" é a nossa nova coluna, em parceria com o projeto Escritas Regenerativas. Aqui, abrimos espaço para narrativas ficcionais que brotam entre espécies, línguas e silêncios — estórias contadas não sobre, mas com personagens mais-que-humanes.
Prepare-se: no conto de estreia, você participará de uma assembleia secreta onde um porco, um cachorro, um gato e uma ursa — personagens reais da literatura — desejam marginalizar os centros das narrativas. Aqui, a ficção se torna território de regeneração. Aqui, até o caderno rosnará baixinho, se necessário.
A assembleia está formada. Falta apenas você decidir se consegue escutar
Dentro de uma discreta gruta abandonada no âmago do Monte Roraima, uma biblioteca octogonal aguardava.
Tinha cheiro de terra molhada, madeira antiga e memórias. A luz era baixa, mas viva: um buraco no teto contornado por penas coloridas filtrava o luar em círculos sobre o centro da mesa de pedra. Ali, sentados sobre tecidos ancestrais, estavam quatro animais com nomes próprios e passados literários complexos e uma humana enigmática.
Os animais grunhiam. A humana ainda não havia falado.
— Ele não veio? — rosnou a Besta, o porco colossal de olhar sombrio, acostumado à sombra e à submissão. — Henri prometeu que o Cordeiro viria. Ele tinha o direito.
— Não está pronto, — respondeu a ursa-polar Mama-lia, cruzando calmamente as patas. Sua voz parecia uma maré fria. — Ainda não escreveram um nome para ele.
— Mas Henri disse que o Cordeiro sempre me seguiria e que depois meus filhos também…
— Ainda bem que você fugiu da fazenda do Henri — interrompeu Mama-lia com a precisão de uma estalactite — O Cordeiro sonha com esse dia e sonhar é um bom começo.
— Oinc oinc oinc — ri debochadamente a Besta — não me venha com esse papinho de sonhos. Enquanto eu apanhava enjaulado e via minha família ser esquartejada, você ganhava doce e salmão toda manhã e era aplaudida no palco do circo.
Argos, deitado aos pés da tradutora, ergueu a cabeça lentamente e latiu. Seus olhos, cegos, pareciam enxergar o que os outros ignoravam.
— O cordeiro sonha, mas não age. Ele espera. Eu também esperei. Mas a verdade é que quando Ulisses voltou, já era tarde demais e só me restou morrer. Não quero apenas ficar torcendo que o Cordeiro esteja vivo quando o escutarem.
— Au au, — disse a humana, num tom de reconhecimento. Tomava notas com uma caneta de tinta vermelha. Nadava entre línguas como uma nadadora ancestral.
— Argos está certo, chega de esperas! A atenção é mais necessária do que os passes de mágica, — disse o gato Bichento, depois de desfiar uma almofada roxa. Seu bigode tremia de irritação. — A agenda humana não nos serve. Não depois do que fizeram com os thestrals, aqueles dóceis cavalos alados. Não depois dos feitiços de obliteração. Somos lembrados quando convém. Ou quando os divertimos. Se o Gato de Botas estivesse aqui ele concordaria comigo.
— Miau. Isso precisa entrar no manifesto, — murmurou a humana.
— Manifesto?! — A Besta riu, um som que parecia metal dobrando. — Eles vão escutar a terra tremer! Vão tombar junto com o céu. Não tenho tempo para palavras bonitas. Vocês ainda acham que a língua salva?
Mama-lia olhou para a tradutora. Havia ternura ali, mas também algo afiado.
— As palavras não salvam, mas preparam. São como o gelo antes da fissura. Ou o ronco antes do ataque. Elas abrem. Besta, pense nos nomes que ainda podem dar aos seus filhos que ainda estão vivos, por exemplo. Você não gostaria que eles pudessem estar aqui também? Eu sei que queria. Palavras são trincheiras e…
Argos latiu. Uma vez apenas. A humana compreendeu.
— E silêncio é cova — respondeu Argos.
Argos tocou com o focinho no caderno da humana. Ela acatou e virou a página — um gesto mínimo, como quem costura uma página de regeneração no escuro.
— A palavra é húmus. E o húmus sabe o caminho da transformação. O húmus interage, sem apagar a história. Então proponho que hoje cada um diga uma memória. Uma memória que a humanidade não conhece, ou que esqueceu. Uma que mereça ser dita e pontuada do seu jeito.
Alguns se olham, outros lambem os pelos. Depois:
— Quando me separaram de minha mãe, — disse a Besta, — eu ainda não sabia que ela tinha nome. Nunca me disseram. Hoje, a chamo de Anka. Quero que conste no registro.
Ao ver a expressão comovida dos colegas, a Besta levantou seu corpo monstruoso e complementou — Ah, escreve aí também que eu sou um macho. Vai que alguém se confunde, né?
Risadas..
— Quando fui criada na Alemanha Oriental, — disse Mama-lia enquanto segurava um torrão de açúcar, — minha treinadora me chamava de Ursinha. Mas na minha cabeça eu me chamava Neve. Era a Neve que fazia os truques no palco do circo. Ninguém nunca soube. Nem ela.
— Eu esperava Ulisses. Quinze anos. Sentado. Em silêncio. O som do mar era o mesmo. Tudo o mesmo. Mas a voz dele, quando chegou, era outra. Eu sou Argos. E fui fiel também ao esquecimento.
— Eu sonhei com Sirius Black me acariciando uma vez. Não contei para Hermione. Achei que não entenderia. Mas aquele foi meu dia mais calmo em Hogwarts — confessou Bichento.
A tradutora humana sorriu.
— Todos essas palavras… todas essas camadas. Memórias que ninguém anotou. Mas que vivem.
— Por pouco tempo, se não forem partilhadas, — disse Mama-lia — encarando a humana, de escritora para escritora.
— Ou defendidas, — rosnou Besta.
— Ou escondidas, — sussurrou Bichento.
Argos apenas respirava, como se cada inspiração arrastasse a poeira de milhões de histórias caninas arremessadas nas rodovias ou enterradas no quintal.
A humana guardou o caderno verde. Sobre a pedra, um gravador. Preto, com dentes de tempo nas bordas. Apertou o botão vermelho.
— Começamos agora. Que esta seja a primeira ata do Comitê Multiespécie. E que os ausentes escutem, onde quer que estejam. Vamos escrever para que eles também se lembrem de seus nomes.
No teto, as penas voavam com o vento noturno. Um som veio de fora. Passos? Cascos? Garras? Ninguém sabia. Mas havia tempo.
O Comitê tinha começado.
Conheça o projeto Escritas Regenerativas
O que pode a escrita, a palavra e a arte em um mundo em decomposição?
O projeto Escritas Regenerativas nasceu como uma investigação vivencial e visceral em busca de respostas para essa pergunta. As propostas do
são vivências de regeneração pessoal à partir da escrita e um chamado para enfrentar os desafios sociais e ecológicos de nossa época através da construção de novas narrativas.Neste próximo domingo, dia 08 de junho, às 10h,
e ofertarão uma Masterclass gratuita para quem quer experimentar um pouco dessas escritas. Será um encontro especial para quem sente que a escrita é uma ferramenta de escuta, de regeneração e de sonho.Mais informações no link abaixo:
Quer encontrar a professora Coral Michelin nas terças-feiras de junho? Começamos amanhã, dia 03 de junho! Faça parte da Comunidade Travessias e participe das nossas Trilhas de Leituras Compartilhadas.
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