O que existe além do que (não) vemos?
Perguntas abertas para decolonizar o olhar
"Se podes ver, repara"
-José Saramago
De qual ponto de vista observo o mundo? E o que será que meus olhos não conseguem ver?
Vivemos em uma sociedade marcada por uma hierarquia dos sentidos, onde a visão ocupa o topo. Ao mesmo tempo, estamos imersos em um inédito excesso de imagens, em contínua disputa por nossa atenção, e submetidos a um desenvolvimento tecnológico cada vez mais sofisticado na produção dessas imagens – compartilhando verdades, filtros, mentiras, criatividade e muito plágio.
Diante de tantas coisas, o que dizem nossos olhos?
Nos acostumamos a ver o mundo como algo “fora” de nós, a ser classificado, comparado, conquistado. Olhamos muito, mas enxergamos pouco. E muitas vezes não observamos o que acontece da pele para dentro, o que sentimos, dos olhos para dentro, diante de cada imagem, paisagem ou rosto que nos atravessa.
Dentre tantas colonizações, também nosso olhar foi colonizado. E, junto com ele, nossa estética, nossa vontade, nossos sonhos, nossas compreensões sobre o que é belo — e sobre o que é “ter sucesso”.
Fico imaginando como seriam nossos sistemas sociais e econômicos se a visão não fosse o sentido dominante, será que seríamos tão competitivos, tão consumistas?
Essas reflexões me fazem lembrar José Saramago e seu "Ensaio sobre a cegueira" – um livro que parte de outras perguntas, mas que nos atravessa com a mesma metáfora:
“Cegos que veem. Cegos que, vendo, não veem.”
E que nos remete ao conhecido e não suficientemente compreendido ditado popular: “O pior cego é aquele que não quer ver.”
Por que fingimos não ver certas coisas?
Em muitas medidas, a cegueira que Saramago denuncia é a mesma que a colonialidade naturalizou.
Quantas vezes nossos olhos foram treinados para ignorar a dor, a violência, as guerras, o racismo, a destruição ambiental, a desigualdade e a fome?
Como conseguimos anestesiar o nosso olhar?E de forma tão seletiva… Alguns sofrimentos parecem importar mais que outros.
Qual foi o impacto do 11 de setembro aos olhos do mundo? E como estamos olhando para os bombardeios sem fim na Palestina, no Iêmen — e em tantos outros lugares — hoje?
O que (ou quem) seguimos não querendo ver?
Essa anestesia não é casual. Ela vem embalada em um pacote de crenças, valores, moral e costumes — uma moldura que define o que vemos e o que deixamos de ver. E transformar — ou ampliar — nossa visão de mundo não é tão simples.
As caravelas seguem chegando
Geni Nunes, em seus escritos e partilhas, apresenta o termo "Caravelas epistemológicas" para descrever as formas de pensamento colonizador que continuam chegando até nós.
Essas caravelas já não chegam mais pelo mar — mas pelo pensamento, pela linguagem, pelas formas como aprendemos a ver e nomear o mundo. Chegam pelos algoritmos, pelas instituições, pelas verdades únicas. Nos enchem os olhos e nos cegam. Um projeto de ocupação que não se dá apenas por armas e espelhos, mas por ideias, mapas e hierarquias do saber.
Quantas vezes seguimos vendo — mas sem ver — porque fomos ensinados a não reparar?
Quantas dessas caravelas ainda aportam em nossos corpos, desejos e formas de conhecer?
O que deixamos de ver?
Há quem diga que, quando os navios europeus se aproximaram da costa, alguns povos originários não os enxergaram de imediato. Não por ingenuidade — mas porque aquelas formas não faziam parte do seu repertório simbólico. Essa história, real ou não, nos serve como uma metáfora potente:
Quantas coisas deixamos de ver porque nossos olhos não foram ensinados a reconhecê-las?
Quantos saberes, cosmovisões e modos de vida simplesmente não “entram na tela” do nosso olhar treinado para não ver?
bell hooks dizia que o ato de olhar pode ser um gesto de resistência.
Quando escolhemos ver além do óbvio, além do imposto, estamos rompendo com a lógica do olhar colonizador — aquele que vigia, classifica e consome.
Decolonizar o olhar é reverter essa anestesia. É aprender a ver com o corpo inteiro. É lembrar de, como disse Saramago:
“Se podes ver, repara.”
E quem repara, se transforma. Quem repara, dá atenção.
Gosto muito dessa palavra repara.
Tem um duplo sentido lindo, Reparar é olhar com cuidado, prestar atenção. Mas também é consertar, restaurar, cuidar do que foi ferido. Ela é uma palavra atenta — e também reparadora.
Vivemos em um mundo onde a atenção é nosso bem mais precioso, pois governa nosso tempo e é disputada por tudo ao nosso redor. Com nossa atenção capturada, seguimos distraídos, com os olhos cheios — e às vezes com o olhar vazio — Mas quando reparamos, algo muda.
Ao dar atenção, abrimos espaço para ver o que antes passava despercebido.
E ao ver com presença, nos permitimos experimentar o ciclo que nos leva a querer cuidar. Transformar o mundo começa por reparar. E reparar, é um jeito bonito de cuidar com os olhos.
Desejos e sonhos colonizados
Outra pergunta me inquieta:
De quem são os sonhos que sonhamos?
Vivemos segundo checklists invisíveis. Antes: diploma, carreira, carro, apartamento, casamento, filhos, aposentadoria. Hoje: beleza e riqueza, o mais rápido possível.
Mas quem escreveu esse roteiro? Quem definiu o que é “dar certo” na vida?
Esse ideal de sucesso, aparentemente neutro, carrega séculos de colonialidade, patriarcado e capitalismo. Ele molda nossos desejos e muitas vezes nos afasta de formas mais autênticas e coletivas de viver.
Gloria Anzaldúa falava dos “lugares fronteiriços” — esses espaços entre culturas, línguas, corpos e histórias onde moram as identidades múltiplas, onde resistem saberes. Fala sobre esses entre-lugares onde podemos começar a reexistir, como dizem tantas pensadoras.
“Eu mudo a mim mesma, mudo o mundo.”
(Gloria Anzaldúa)
Nesses lugares fronteiriços podemos experimentar a liberdade da escolha, pesquisar o que queremos, o que é realmente importante.
A decolonização do olhar também nos obriga a perguntar:
O que é ser humano?
E, mais ainda: Que humanidade estamos praticando?
Durante muito tempo nos ensinaram que ser humano é ser separado — da natureza, da comunidade, do mistério. Mas os saberes ancestrais dizem o contrário: ser humano é tecer relação, é ser parte da Terra, é sonhar junto.
Na obra "A Queda do céu", Davi Kopenawa nos lembra que “os brancos querem ver tudo com os olhos”, enquanto os xamãs veem com os sonhos, com os espíritos, com a floresta viva.
Como libertar nosso olhar?
Decolonizar o olhar não é apenas trocar uma lente por outra.
É questionar o próprio ato de olhar.
Passa por reduzir o consumo de telas, questionar o uso de filtros, photoshops,e imagens produzidas por IA e, principalmente, questionar as consequências dessas práticas.
Decolonizar o olhar é sobre desaprender para ver de novo. É abrir os olhos do coração e escutar com o corpo. É se perguntar todos os dias:
o que eu não estou vendo, e o que posso começar a enxergar — com outros olhos, outras palavras, outras presenças?
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