Penso que o termo transição remete ao movimento de um estado para outro, uma porta giratória por onde entramos de um jeito e saímos completamente diferentes, um casulo vivo dentro do qual não sabemos mais se há uma lagarta ou uma borboleta.
Assim como o verbo transitar, que me faz pensar em caminhos sendo percorridos e na atenção necessária para chegar a um novo lugar. E logo me vem a palavra transe para representar esse sentimento de absorção e perda momentânea de referenciais.
Olhando assim, essa tal transição parece um pouco vertiginosa e um tanto exaustiva, mas acho que posso contar um pouco sobre como ela pode acontecer de forma gradual.
Quando eu estava fazendo o doutorado em microbiologia, uma das minhas atividades era cultivar cianobactérias bentônicas, microrganismos fotossintetizantes que crescem como um tapete verde no fundo de riachos e lagos rasos. Eu passava muitas horas por dia durante meses em frente ao microscópio, observando formas e comportamentos, selecionando, isolando e cultivando os espécimes em laboratório.
Quando os cultivos eram iniciados, alguns simplesmente não se desenvolviam enquanto outros tomavam os tubos de ensaio das mais variadas formas: densas massas flutuantes, delicados tecidos verdes ondulantes, emaranhados em forma de túneis por onde o oxigênio da fotossíntese fluía. Havia um tipo de organização coletiva acontecendo e, embora não fosse o objetivo da minha pesquisa, isso me intrigava bastante.
Comecei a questionar se aqueles seres eram capazes de algum tipo de “inteligência”.
Sempre que precisava renovar os cultivos, o que implicava em retirar uma pequena massa de organismos e transferir para um tubo com um substrato novo, eu sofria um pouco com o fato de que precisaria autoclavar e descartar os cultivos antigos, colocando-os vivos dentro de uma espécie de panela de pressão até que todos morressem e pudessem ser descartados com segurança para o meio ambiente. Parece exagero, mas eu me sentia uma genocida completa.
De repente, percebi que a minha percepção sobre as cianobactérias estava mudando.
Comecei a buscar trabalhos e artigos que pudessem descrever o comportamento, as intenções e as escolhas na organização das comunidades. Eu não encontrava quase nada e comecei a procurar por outros cientistas incomodados com o motivo de ficarmos ocupados em coletar, isolar e dissolver esses organismos para extrair seus genes e declarar o seu lugar na grande Teia da Vida.
Então eu pensei:
"Quais outros métodos de fazer ciência seriam possíveis?”
Essa pesquisa paralela me guiou até os caminhos do pensamento sistêmico e da ecologia profunda, não antes de eu entregar a minha tese e sair um pouco desconcertada daquela experiência. Mas, descobri que há tempos havia pessoas questionando esse reducionismo científico e acabei encontrando essa visão alternativa à ideia cartesiana de um mundo interpretado como uma máquina manipulável e sem inteligência própria.
A ecologia profunda questiona a posição hierárquica da ciência, fundamentada no pensamento analítico onde valores como autoafirmação e dominação sobrepujam a cooperação e o pensamento integrativo e sistêmico. É preciso tecer perguntas novas que não estejam fundamentadas apenas na visão antropocêntrica, de uso e exploração da natureza, mas em uma visão que considera que qualquer ser vivo possui valor em si mesmo e tem o direito de bem viver e evoluir.
O paradigma do pensamento sistêmico e da ecologia profunda tem o potencial de tornar a ciência muito mais engajada nos desafios que temos experimentado com a emergência climática.
Cada vez mais vamos lidar com situações complexas e urgentes, com questões éticas relacionadas à conservação da vida e com eventos traumáticos que precisarão de cuidado e regeneração. Estamos agora questionando o bem-estar animal e a maneira como são explorados pela ciência e pela indústria; estamos testemunhando as relações íntimas que árvores e outras plantas estabelecem entre si e o fato de que elas podem se expressar através de infrassons e outros sinais; estamos descobrindo a habilidade de fungos e outros microrganismos de memorizar caminhos e fazer escolhas.
Tudo isso pode ser um pouco vertiginoso e assustador, mas é inevitável. Estamos no meio da transição.
À medida que reconhecemos a beleza da nossa interdependência radical e a complexidade de cada ser vivo, nos damos conta de que a cooperação é essencial não só para os ecossistemas, mas também para as sociedades humanas. Hoje, a comunidade científica já abriu os olhos para o fato de ter permanecido isolada do público não acadêmico e perder a confiança de muitos em um momento tão delicado quanto o da pandemia.
Para isso, novos métodos com a finalidade de integrar ciência e sociedade, como a ciência cidadã, começam a ganhar espaço.
A ciência cidadã é uma prática que consiste em envolver pessoas sem formação científica no processo de produção de conhecimento. Pessoas leigas estão sendo convidadas a participar da coleta de dados e informações nas mais variadas linhas de pesquisa, desde o monitoramento de meteoros no céu até animais e plantas em terra firme. O interessante é que os projetos de ciência cidadã com melhor engajamento do público são aqueles relacionados com problemas locais ou questões de amplo interesse social.
A ciência, como prática coletiva que é, começa a ser moldada pelos interesses da comunidade e não apenas das universidades e corporações. As comunidades, engajadas em seus territórios, passam a olhar mais profundamente para as suas questões e a procurar soluções integradas.
A mudança para uma sociedade que se une para sustentar a vida em todas as suas formas está acontecendo e em algum momento todos vamos ser convidados a tomar parte disso.
Pode ser uma cianobactéria, uma árvore, um inseto, uma pessoa, ou até uma montanha, apenas saiba que uma nova visão de mundo se constrói a partir das relações que tecemos com outros seres, nas emoções que expressamos e nos pensamentos e ações que oferecemos.
A vida é complexa e só o nosso apoio mútuo poderá dar conta de tudo. Para mim, nada é mais reconfortante do que saber que, apesar da minha interferência, as cianobactérias estão espalhadas pelo planeta produzindo oxigênio para que eu obtenha a energia necessária para escrever sobre elas.
💠Conheça alguns exemplos da ciência cidadã:
Quer conhecer mais sobre os Projetos da Ciência Cidadã ou cadastrar um? Então venha se maravilhar com esse compilado aqui.
💠O que um polvo pode nos fazer refletir?
Professor Polvo, um documentário original da Netflix, conta a história de Craig Foster, cineasta e amante dos oceanos que volta a mergulhar na Cidade do Cabo, na costa sul-africana.
Depois de uma crise existencial provocada pelos desprazeres do trabalho, Craig resolve mergulhar no seu oceano interior e faz isso mergulhando, todos os dias, nas profundezas do mar gélido e revolto do sul da África.
Durante esses mergulhos, Craig se depara com um polvo fêmea e o filme acontece através do que esse encontro inusitado proporciona. Assim como a Bruna refletiu com as cianobactérias, Craig (e os telespectadores) podem aprender um tanto com essa interação.
Fica a dica para quem ainda não assistiu!
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