O manual que ninguém te conta sobre morar no campo
🌄 Das Montanha | EP#3: Os perrengues e os prazeres de uma vida nas montanhas.
Nós sabemos que muita gente já parou para pensar :
E se eu fosse viver na roça?
Talvez, você seja uma dessas pessoas. Ou, quem sabe, já tenha comprado essa ideia e se jogado nela, como nós. Mas tem muitas coisas que ninguém te conta sobre morar na mato e que você vai descobrindo no dia a dia.
O ato de fazer essa migração da cidade para o interior, pode ser uma medida de regeneração, mas para que seja uma ação realmente regenerativa é preciso mudar os padrões internos de como vivemos. É preciso mais do que trocar o asfalto por terra: é necessário repensar nossos padrões internos, os hábitos que carregamos, os olhares que cultivamos. Afinal, não adianta sair da cidade e levar para a floresta velhos hábitos e formas de enxergar o mundo.
Foi pensando nisso , e inspirados pelos papos e aprendizados do dia a dia no Sítio Terra Lua Terra Sol, que decidimos escrever este manual de pequenezas. Um convite à observação, à escuta, à sensibilidade com o tempo, a paisagem, o clima, o lixo, os sons, a terra, o tédio, e tudo o mais que muda quando a gente muda de lugar e jeito de estar no mundo.
Como disse nosso mestre, Manoel de Barros:
“Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).”
A relação com o tempo:
Quando estamos imersos em um ambiente muito natural, onde podemos ver todo ciclo de uma semente se transformar em comida, a gente se dá conta de que o tempo passa de outra forma. Se antes, a pressa em ver algo acontecer tomava conta do nosso corpo, hoje a gente consegue olhar para os processo com mais carinho.
Mas uma coisa que ninguém te conta é que se você não mudar padrões internos de como olha e se relaciona com o relógio, você vai continuar sem tempo de apreciar um pôr do sol. Afinal, tem muito trabalho a ser feito. A chave é se permitir viver no tempo da natureza.
A relação com a paisagem:
“Aproveita o sol, aproveita o sol”. A gente vive falando isso para os 5 cachorros que co-habitam o sítio com a gente, especialmente nos dias de frio. Mas essa frase vale muito para lembrarmos de aproveitar cada pequeno detalhe do dia. No inverno, o sol se esconde rapidinho, então é realmente preciso aproveitá-lo. Neste momento em que escrevemos essa coluna, no final do outono, inclusive, estamos posicionados com as cadeiras para aproveitar o astro rei.
Mas, além do sol, a gente aprendeu a aproveitar as montanhas. Os dias que conseguimos tomar banho de rio, os dias em que acordamos em cima das nuvens— graças a serração… Aprendemos a apreciar tudo isso, exercitando o desapego.
Os girassóis que habitavam nossa agrofloresta, nos ensinaram sobre isso. Mesmo entre outras espécies botânicas e suas fileiras desalinhadas, eles formavam um campo digno de Van Gogh. Mas o tempo passa e pesa até para os girassóis. Agora secos e tombados já não encantavam tanto o nosso olhar humano e viciado em um ideal de beleza. Até que um dia, fomos chamados a olhar com novos olhos. O chamado veio do canto dos Periquitos-rei. Aos seus olhos, as flores agora secas e corcundas passaram a ser um belíssimo de um banquete. Seus cantos não negavam a felicidade.
A beleza ainda estava lá, mas em outra forma…
Uma relação de amor e desapego também aconteceu com as zinias do nosso canteiro. Passaram a primavera e verão embelezando o caminho com suas cores e tamanhos.
Com a chegada do outono e quase inverno, elas já secaram. Agora é hora de guardar suas sementes para a próxima estação, mas isso nos leva ao próximo ponto:
A relação com as estações do ano:
Quando você vive na roça, você vive as estações com mais presença. Mas além disso, está sempre pensando na estação seguinte. É um exercício de curtir o presente, olhando sempre o por vir.
Afinal, a lenha que utilizamos em junho, julho e agosto para aquecer a casa, precisa ser cortada no final de março. A regra também vale para como cuidamos do solo. Enquanto vivíamos as chuvas diárias no verão, já estávamos nos preparando para o período de seca, cobrindo o solo para protegê-lo.E a mesma estratégia serve para quando pensamos nas plantações. A estação do presente é quando começamos a geminar as sementes da próxima estação.
* Claro que isso tudo pode variar com as diferenças de cada região do planeta.
A relação com o lixo:
Na cidade, muitas vezes nos limitamos a separar o lixo em orgânico e reciclável, acreditando, de forma um tanto “ingênua/conveniente”, que alguém vai dar conta do que fazer com ele dali para frente. Aqui no sítio, isso não é uma opção e, na verdade, nem deveria ser na cidade.
Aqui, a gente não sabe ao certo para onde vai o nosso lixo. Não tem coleta seletiva. Todo o lixo da comunidade rural é deixado em lixeiras à beira da estrada e nem precisamos dizer que se vê de tudo ali: o que deveria e o que não deveria estar. O lixo, mal administrado, passa dias ao léu, até ser levado pelos ventos e pelas chuvas para os campos ao redor.
Nos esforçamos para causar o menor impacto possível. Sabemos que viver sem impacto algum é praticamente impossível, mas buscamos soluções para minimizar essa questão.
Usamos um biodigestor que recebe os resíduos orgânicos da cozinha e as fezes dos cães, gerando biogás e biofertilizante, que voltam pra terra em forma de vida. Contamos mais sobre esse processo aqui neste post:
E as águas dos banheiros e cozinha? Bom, nossas águas cinzas (da pia, cozinha e chuveiros) e escuras (do vaso sanitário) são direcionadas para um segundo biodigestor, que trata os resíduos e devolve essa água para o solo sem contaminação. Essa água limpa, então, vai para um círculo de bananeiras, onde é filtrada pelas raízes e folhas, alimentando as plantas com água e nutrientes. Além disso, as bananeiras absorvem e transpiram essa água (evapotranspiração) de volta para atmosfera. Assim, elas colaboram com a formação de gotículas que, mais adiante, podem se transformar em chuva.
As folhas que caem das árvores, em vez de serem queimadas, como ainda é comum em muitas casas com quintal, viram o melhor adubo que nossos canteiros poderiam ter. Protegem o solo do sol e, com o tempo, se decompõem, virando terra.
Dentro do possível, buscamos observar, aprender e reproduzir os ensinamentos da floresta. Ela já faz tudo isso e nós, com nossa capacidade e inteligência, podemos tornar isso prática no nosso dia a dia.
A relação com os sons:
Viver na floresta não é exatamente uma experiencia sem barulhos. Há sons o tempo inteiro. Acordamos já com eles. Você vai pensar em galos, mas, na verdade, por aqui são os “gritos” estranhos do Jacú que nos avisam que o sol está raiando.
Em seguida os galos também aparecem, seguidos do sanhaço-cinzento, que passa o dia dando o ar da graça. Tem também os periquitos-rei, que ainda passam procurando algumas sementes de girassol perdidas. O tucanuçu, o japu e a gralha-do-campo que andam sempre juntos, atrás das bananas que nascem e escapam da nossa perícia semanal. Bom pra eles. Aqui a gente aprende a dividir. Também tem o canto do bem-te-vi, que adora uma briga com os outros pássaros. O risadinha, que tem um dos sons mais fofinhos. A seriema, inconfundível no seu canto que ultrapassa qualquer outro som.
E tantos outros pássaros….
Além disso, outros sons não nos escapam. O som das folhas no chão, dançando com o vento. O vento balançando os enormes eucaliptos, parecendo chuva. O som forte e abafado das águas que correm no interior da mata. Galhos e troncos se desprendem da sua mãe-árvore e caem com força no chão. E tem os grilos que cantam entre as folhas. As cigarras que, quando chega a época do acasalamento, cantam tanto que às vezes é ensurdecedor. As patinhas dos cachorros aqui de casa. E as patinhas dos seres desconhecidos nos telhados, durante a noite.
Tem som o tempo todo. E a gente aprende com eles.
A relação com a terra e alimentação:
Plantar alguma coisa requer muita capina, buracos e força. Mas enquanto não pegamos na enxada, muitas vezes, não nos damos conta de que existe todo esse esforço por trás de um tomate, por exemplo. Talvez, seja por esse motivo que muitas pessoas, quando vão ao mercado ou à feira, não se preocupam em dizer:
“Mas, esses tomates estão muito feios.”
Aprendemos aqui no sítio que, para além de tomates bonitos (o que não quer dizer que os feios sejam ruins, mas crescemos com a ideia de que, se algo é feio, naturalmente é ruim), os ciclos de uma plantação exigem muita dedicação, acompanhamento e, talvez, um pouco de sorte.
Quando você cultiva o seu próprio alimento, começa a dar valor ao que aquele alimento traz. Ao tempo que ele levou pra crescer, se desenvolver e ser colhido. Ao tempo e esforço que você levou ao abrir um berço para plantar as frutíferas, por exemplo.
Quando você cultiva o seu próprio alimento e decide comer, majoritariamente, aquilo que você planta, aprende que vai se alimentar do que nasce e frutifica naquela estação. Que, para comer manga, vai ter que esperar os meses quentes. E, para comer mexerica, vai ter que esperar os meses frios.
A sabedoria da natureza em fornecer o que a gente precisa em cada estação é o que deveria nos aproximar e nos fazer enxergar que fazemos parte dela. Ela está, toda hora, nos dizendo sobre o que deveríamos nos alimentar.
A relação com o tédio e rotina
Muitas pessoas podem achar que viver na roça, no alto das montanhas, pode ser entediante. Mas, a nossa experiência é o oposto disso. Existe rotina, mas os dias nunca são iguais aos outros. Há sempre uma visita inesperada para acontecer. Um tucano que cruza o horizonte na hora do café da manhã, os pica-paus que brigam com os tucanos. As siriemas e o veado mateiro passando pela sua porta… quando que isso vai ser tedioso, gente?
Aqui no Sítio Terra Lua Terra Sol também temos o privilégio de ter uma área florestal repleta de águas e cascatas. A gente garante que melhor do que um passeio no shopping é um passeio em silêncio por uma trilha, podendo sentir a energias das cachoeiras e de toda flora e fauna que co-habitam esse mundo com a gente.
Agora que o sol já se pôs, é hora de entrar e acender a lareira. Vamos adorar saber suas impressões sobre o nosso manual de pequenezas.
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