Mulheres e Cidades
Um movimento rizomático transformando narrativas dominantes do planejamento urbano | Travessia 16: Transformar
Gosto de pensar nas centenas de ativações, publicações, conversas, dissertações de mestrado e teses de doutorado, manuais, encontros, entrevistas itinerantes, intervenções e conferências oficiais sob o tema ‘mulheres e cidades’ como um movimento rizomático emergente.
A imagem de um rizoma, um caule de planta que cresce horizontalmente no subsolo, enviando raízes e brotos a partir de seus nós na superfície do solo, é cativante. Ao contrário de uma árvore, que tem uma estrutura de raiz fixa que leva a uma forma hierárquica ramificada, um rizoma não possui tronco ou fundação central. Ele cresce e se espalha em todas as direções, sem um início ou fim claro.
Produção de lugares sensíveis ao gênero, urbanismo feminista, cidade com perspectiva de gênero – existem tantas denominações quanto os brotos que surgem dos nós conectados por uma estrutura rizomática. Essas abordagens manifestam-se como um sistema descentralizado que molda e transforma narrativas dominantes da teoria e prática do planejamento urbano.
O termo 'movimento' aqui é compreendido mais como uma 'sezione' de uma composição musical do que como um esforço organizado liderado por uma instituição, um coletivo ou mesmo um hemisfério do globo. Margaret Wheatley, em seu perspicaz artigo Using Emergence to Take Social Innovations to Scale (2006), descreve o ciclo de vida da emergência, que começa com redes, evolui para comunidades de aprendizado e, eventualmente, se transforma em sistemas capazes de exercer influência global.
‘A emergência é a explicação científica fundamental de como mudanças locais podem se manifestar em sistemas globais de influência. Como uma teoria de mudança, ela oferece métodos e práticas para alcançar as mudanças necessárias em larga escala nos sistemas.’
— Margaret Wheatley
A seguir, algumas características de um rizoma que podem ser encontradas no movimento emergente de mulheres e cidades:
Múltiplos Pontos de Entrada
Um rizoma pode ser acessado ou compreendido a partir de qualquer ponto, sem um ponto de partida ou uma progressão linear do conhecimento. Em contraste com sistemas mais tradicionais, que seguem uma trajetória linear de causa e efeito, um movimento rizomático — como o que envolve mulheres e cidades — oferece múltiplos caminhos que podem ser acessados ou abandonados em diferentes momentos, refletindo a complexidade e a fluidez de ideias, conhecimento e práticas.
Multiplicidade
Rizomas não são singulares, mas múltiplos. Eles consistem em muitos pontos ou nós que formam uma rede de relacionamentos. Gilles Deleuze e Félix Guattari, em sua obra Mil Platôs (1980), usaram o termo ‘multiplicidade’ para descrever sistemas onde nenhum elemento pode existir isoladamente. Em vez de entidades discretas, tudo está interconectado em uma teia dinâmica de relações. Isso reflete como todas essas ativações ‘mulheres e cidades’ estão interligadas e não podem existir de forma isolada.
Resiliência e Adaptabilidade
Assim como um rizoma botânico pode sobreviver gerando novos brotos e raízes, mesmo quando partes dele perdem vitalidade, um rizoma filosófico é resiliente e adaptável. Ideias, culturas ou sistemas baseados em princípios rizomáticos são resistentes ao controle, à manipulação ou destruição, pois podem se regenerar a partir de diferentes pontos. Isso torna as estruturas rizomáticas inerentemente resistentes ao controle rígido e até mesmo ao desejo egocentrado de dominação.
A metáfora do rizoma oferece o arcabouço para a prática budista de Mudhita – ‘sua alegria é minha alegria’, ‘seu sucesso é meu sucesso’ – entre mulheres. Esta prática de contentamento empático desconstrói a competitividade, desloca o foco da comparação para a celebração, promove a colaboração e transmuta qualquer sentido de rivalidade.
Comunicação Geradora
O conceito de rizoma é frequentemente utilizado para descrever como a informação se espalha pela internet, pelas redes sociais ou redes de comunicação global. Nesses sistemas, os nós — representados por usuários ou postagens — estão constantemente se formando, dissolvendo e se reorganizando de maneiras complexas. Novas narrativas associadas a mulheres e cidade são enraizadas na singularidade de lugares específicos, mas compartilhadas através de plataformas — LinkedIn, Instagram, Grupos do WhatsApp — onde cada postagem marca outra série de nós interdependentes que, por sua vez, repercutem num padrão de comunicação capilarizada.
Tanto no sentido botânico quanto no filosófico, os rizomas destacam um modelo de interconexão onde múltiplos nós podem formar novas conexões sem uma estrutura central ou hierárquica. À medida que as redes de ideias crescem por meio de conexões e associações – frequentemente de maneiras inesperadas – a rede evolui organicamente, tornando-se mais dinâmica e geradora de novos padrões (em vez de simplesmente ‘seguidora’ de padrões autocentrados).
Conclusão
No pensamento pós-moderno, o conceito de rizoma nos ajuda a compreender a ruptura com as grandes narrativas – as verdades universais – e a deslocar o foco para verdades singulares, locais e interconectadas. Narrativas de cidades como Viena, Umeå, Barcelona, Lyon, Glasgow e Londres – indubitavelmente do Norte Global – fazem parte desse diálogo. Entretanto, as vozes que emergem desses centros de urbanismo feminista devem ficar atentas ao pensamento de autoras como Against White Feminist, de Rafia Zakaria.
Essas narrativas urbanas são enriquecidas por histórias únicas que emergem em nível de bairro, como as das escritoras de Rocinha, que participan de debates Sul-Norte sobre a produção de conhecimento feminista decolonial. Assim como as mulheres do coletivo #vivacentroleste que juntos a moradores, trabalhadores e frequentadores do centro histórico de Florianópolis fortaleceram a identidade bio-cultural-espacial do território com na requalificação da área, preservando os paralelipidos históricos datados de 1886.
A estrutura rizomática nos permite enxergar as coisas (eventos, livros, artigos, palestrantes, a efervescência de ideias) em termos de interdependências ao abordar o movimento emergente em termos de totalidade em vez de partes. Essa perspectiva aprofunda nosso entendimento dos debates de mulheres e cidades como um sistema complexo, dinâmico e interconectado, onde modelos tradicionais de autoridade e linearidade evoluem e abrem espaço para novas possibilidades. Ela nos convida a reavaliar como as metáforas e modelos que usamos para navegar pelo mundo se manifestam neste movimento colaborativo e promissor de reimaginar e reformular a relação mutuamente constituída entre mulheres e cidades.
Aqui estão alguns exemplos de ativações nodais envolvendo interdependências rizomáticas que ocorreram nos últimos 6 meses:
Na Bélgica – Mulheres do NEB organizaram uma exposição durante o Festival Novo Bauhaus ao lado de uma série de conversas sobre Empoderamento das Mulheres, Espaço Público e Mudança Climática sob a orquestração de Rozina Spinnoy.
Em Edimburgo – A UN House Scotland promoveu três mesas-redondas sob o tema Encruzilhadas Urbanas: onde a política encontra a comunidade, realizadas na Universidade de Edimburgo.
Em Leeds – Conferência Mulheres e Planejamento: Da Teoria à Prática organizada pela Universidade Leeds Beckett sob a orientação da Mulher de Influência 2024 Dra. Karen Horwood MA FHEA AssocRTPI e Charlotte Morphet MRTPI FRSA AoU trouxe para mesmo espaço teoristas e praticantes de duas gerações para refletir nos avanços do urbanismo sensível ao gênero.
Em Nova York – A ONU Mulheres, durante o Fórum Político de Alto Nível (HLPF), reuniu feministas, especialistas, representantes da ONU e atores do desenvolvimento para apresentar e discutir os Aceleradores de Igualdade de Gênero (GEAs) para os ODS, particularmente o ODS 5.
Em Edimburgo – Modelando a Cidade Feminista dentro do Curious Festival, promovido pela Royal Society of Edinburgh e facilitado pelas membros da RSE Daisy Narayanan MBE e a arquiteta premiada Jude Barber.
Nos Países Baixos – A Cidade com Perspectiva de Gênero orquestrou uma série de eventos ao mesmo tempo em que estabeleceu uma rede internacional de profissionais e pesquisadores, com vários grupos de trabalho liderados pela urbanista feminista Nourhan Bassam.
Em Londres – Nossa Cidade, Nossas Ruas: Mulheres, design e o ambiente construído, encontro realizado na Biblioteca da LSE pela arquiteta paisagista Marina Milosev e a escritora e urbanista Jennie Savage FRSA.
Conheça o livro
Cidades são lugares de descoberta, disrupção e transformação.
Este livro surge na intersecção entre duas megatendências que influenciam o mundo em que vivemos: o reposicionamento das mulheres na sociedade e o ritmo acelerado da urbanização.
No livro “E se as Mulheres Projetassem a Cidade? - 33 pontos de alavancagem para fazer sua cidade funcionar melhor”, May East demonstra que o futuro da humanidade e da biosfera será decidido pela maneira como escolhemos evoluir nossas cidades e vilas no século XXI. As cidades cobrem apenas 4% da superfície do planeta, mas são responsáveis por 80% do consumo global de energia, 75% das emissões de carbono e mais de 75% dos recursos naturais do mundo.
Ele se baseia em uma série de documentos que reafirmam o quanto historicamente as cidades vêm sendo planejadas e construídas tomando, principalmente, a experiência masculina como referência. Como resultado, as cidades tendem a funcionar melhor para os homens do que para as mulheres. Mas o foco desta investigação não foi um estudo comparativo entre os gêneros.
Ao convidar as mulheres a revelarem o potencial enraizado na singularidade de suas áreas e a identificar pontos de alavancagem para a transição de ‘o que é’ para ‘o que pode ser’, a autora abraçou uma perspectiva de gênero do pensamento sistêmico para a mudança de sistemas.
Compreender as principais tendências de urbanização que se desdobrarão nos próximos anos e revisitar o papel que as mulheres podem desempenhar na mediação do espaço e na criação do lugar são cruciais para forjar um urbanismo de gênero que funcione para todas e todos.
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💠Encontro do mês:
Diálogos com almas vegetais: Transformação através dos saberes da Terra, das plantas e do corpo sensível.
Dia 28 de novembro (quinta-feira), às 19h, Yarimã Tlahpaliani vai conduzir uma prática para vivenciarmos as transformações a partir do corpo, da escrita e das plantas. Vai ser lindo.
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