Nos últimos dias, queria atualizar uma leitura, que sabia existir entre os capítulos do livro “O negócio é ser pequeno”, de E.F. Schumacher. O livro não estava na estante, então só poderia estar numa das caixas da última mudança. Acabei encontrando. E é nestas horas que a dor nas costas de carregar livros nas múltiplas mudanças é recompensada.
Mas porque não buscar na internet? Afinal, hoje está tudo armazenado na nuvem... Bem, para além de qualquer nostalgia ou da discussão sobre a preferência de ler livros impressos ou em telas, o fato é que nem tudo está mesmo na nuvem. E, quando está, existe um custo além do financeiro, de tantos cadastros, números e anúncios - sem falar dos algoritmos que passam a te obsediar para sempre - que chega a doer na alma.
De qualquer forma, a tal “nuvem” é talvez o maior símbolo da globalização da informação. Mas uma nuvem, entre outras coisas, deixa o tempo nublado, sem conseguirmos ver o sol. Uma nuvem global não deixa de ser, então, um pouco assustadora.
Esse embaçamento da visão, no mundo globalizado, tem nos tornado mais distantes das coisas. Na verdade, as coisas estão cada vez mais perto, mas ficamos mesmo distantes da origem das coisas, das condições que originam as coisas, dos lugares que originam as coisas. Com alguns dados numa tela e sem contato humano algum, em alguns dias chega em nossa porta uma roupa fabricada na China, uma ferramenta fabricada na Alemanha, ou qualquer badulaque que promete deixar a vida melhor, vindo de qualquer lugar, sem um manual contando como aquilo foi produzido.
E isso importa? Bem, na verdade, só importaria se de fato deixássemos de comprar uma “coisa” se soubéssemos que ela foi produzida com mão de obra escrava, que estivesse causando um grande impacto no ambiente ou que, em última análise, ferisse de alguma forma nossos princípios éticos.
Infelizmente, por mais que a consciência do consumidor esteja cada vez maior, a informação sobre impactos sociais e ambientais da produção ainda não tem sido suficiente para a redução do consumo frenético e desenfreado.
Caso contrário, a sociedade já teria abolido o consumo de garrafas plásticas, de anéis de ouro, de pedras preciosas, de grãos produzidos em grandes monoculturas, de SUVs...
O buraco, afinal, é sempre mais embaixo, ou em outro lugar.
A “nuvem” de informações que nos nubla os tempos muitas vezes tem nos livrado da culpa, para nos dar a certeza do dolo, ainda que fujamos de pensar sobre isso. Se temos a informação de que algo é produzido em condições subumanas, por exemplo, e não cessamos seu consumo, é claro que passamos da condição de compradores ingênuos a cúmplices criminosos. Obviamente, a mão invisível do mercado, graças a deus ou a quem o mercado sirva, jamais nos julgará assim.
É claro que ter informação é fundamental. Mas talvez, junto com a nuvem de informações, deveríamos criar uma nuvem de empatia pelo bem viver ao redor do mundo, da qual chovesse respeito e cuidado o tempo todo. Afinal, para que possamos viver neste planeta em longo prazo, na era do Antropoceno, não basta ter informação. É preciso que utilizemos a informação para transformar e, para que tenhamos vontade de transformar, é preciso muita empatia. Empatia com o outro, com as outras espécies, com os ambientes, com a história de cada povo, com o futuro da humanidade.
Empatia? De onde vem?
Empatia, porém, não é algo que o mercado tenha aprendido a criar. Então, ela precisa vir de um outro lugar, e não parece ser de um lugar global. Cada lugar, cada tempo e cada história que vivemos é que nos envolve, se deixarmos. Mas só se deixarmos. Se deixarmos, o verão é anunciado pela pitanga colhida no pé e o Natal pode vir com cheiro de jasmim. No Cerrado, o cheiro da primeira chuva caindo na terra, depois da secura do inverno, vai muito além da informação meteorológica: é canal para a empatia entre o lugar e a esperança do agricultor que ali vive.
Para quem mora nos manguezais do Brasil, a vida tem muito de caranguejo, mas não só: é do mangue que também sai a lenha, o remédio, a casa, as relações e redes humanas. Para quem mora no sul do Brasil, a semana santa vem com cheiro de macela, colhida dos campos e colocada para secar; para quem mora na serra, o outono resgata o gosto do pinhão, sapecado, na chapa ou cozido. E com o gosto do pinhão, vem o amor pelo pinheiro, a empatia pelos pinhais. Sem essa empatia, individual e coletiva, todos os pinhais já teriam sido derrubados, não há dúvida. Para quem mora no litoral do sul e sudeste, o outono e o inverno vem com a tainha, cuja pesca é esperada e celebrada por milhares de famílias pescadoras. E para pescar tainha, é preciso ser em grupo, é preciso observar o mar, é preciso manejar redes... e tudo isso não se faz sem empatia.
Empatia não se faz só com informação globalizada. Empatia a gente cria com o lugar que a gente vive, com a natureza de cada lugar, com as pessoas dos lugares em que nossa história se confunde. A macela é nos campos, o pinhão nos pinhais, o caranguejo no mangue, a tainha nas praias que ela gosta de chegar. E cada lugar tem gentes diferentes, que se aproximam para se relacionar com o ambiente, criando histórias a cada colheita, a cada pescaria. Pessoas, histórias, lugares e ambientes que a gente passa a defender, pois são, no final das contas, a gente mesmo.
A luta dos seringueiros na Amazônia, por exemplo, envolveu muitos “empates”. Um “empate” era assim: pessoas sem recursos e sem armas se colocavam à frente de tratores de esteira que estavam prestes a derrubar a floresta, na esperança de fazer com que os trabalhadores que os manejavam pudessem perceber a tragédia que estavam a iniciar.
Muitas vezes, estes trabalhadores eram pessoas que viveram as mesmas histórias, nos mesmo lugares, com amigos ou parentes na fileira do empate. E a empatia surgia, e a devastação parava. Outras vezes, não. De onde viria a força para se colocar numa fileira de empate? De informações da internet?
O nome original do livro “O negócio é ser pequeno” é “Small is beatiful”, cuja tradução literal seria “Pequeno é lindo”, ou, para ser mais exato com a língua inglesa, mas com uma certa licença ao português, “O pequeno é cheio de boniteza”.
A língua inglesa tem dessas coisas. Quando algo é cheio de si mesmo, o nome desse algo é ele mesmo com o sufixo “full” (cheio). No português, quando uma coisa é cheia dela mesma, a gente costuma dar outro nome: cheio de boniteza vira lindo. Talvez, porque entendamos que as coisas que ficam repletas de si mesmo não são possíveis de contar, de quantificar, então criamos outro nome quando isso acontece.
Mas, se conseguíssemos mesmo medir a boniteza de algum lugar, criando métricas ou indicadores mais objetivos, só a paisagem não daria conta. Teríamos que nos perguntar: por que essa paisagem é assim? Que ambientes estão nela? Que plantas e bichos vivem aqui? Como nós, como humanos, nos relacionamos com ela? E quem são estes humanos? A Dona Maria, o Tião, o Seu José...
Bem, podemos tentar. Um jeito de fazer isso é, quando fazemos turismo, procurar fazer turismo de base comunitária (TBC). Vários lugares pelo Brasil e pelo mundo já contam com este tipo de mobilização, na qual o ato de conhecer o lugar é mediado por quem nele vive e conhece os ambientes, as pessoas, as histórias. Quem vive esse tipo de experiência em geral também é “contaminado” pela empatia com o lugar e suas pessoas. Infelizmente, turismo ainda é artigo de luxo para a maioria da população. Mas é possível, também, criarmos empatia pelos lugares a partir de uma coisa que quase todo mundo faz, em maior ou menor intensidade: o consumo. Das coisas que são produzidas nos mesmos lugares em que moramos, podemos buscar conhecer quem está ali, vivendo e produzindo. As feiras do produtor, os ranchos de pesca e os espaços cada vez mais numerosos de economia solidária são pontos de conexão importantes para começar essa empatia.
Quando a gente vai conhecendo quem produz o que a gente consome, com suas realidades e suas paisagens, podemos, se deixarmos (só se deixarmos) criar laços de amizade, de bem querer. E vamos dando chance a nós mesmos de resgatar aos poucos nossa conexão com o lugar. E, também, de acabar preferindo consumir aquilo que está próximo.
Se queremos lutar pela conservação da natureza, não tem nada mais eficaz, mesmo que o mercado da propaganda se empenhe em nublar essa certeza. Uma carne de boi consumida a partir de um sistema de agricultura familiar, no seu município, é infinitamente menos impactante ao ambiente do que um bife de carne de soja que você compra no supermercado, produzida em monocultura a centenas ou milhares de quilômetros e processada e transportada com extrato de dinossauro (vulgo petróleo). Para termos água limpa e disponível no mundo, fechar a torneira para escovar os dentes não se compara a comprar comida em uma feira direta de produtores orgânicos do seu lugar.
E se deixarmos, a gente vai percebendo que a Dona Maria, o Tião, o Seu José, que produzem aquilo que consumimos, em geral estão lutando muito para manter sua produção e a paisagem onde vivem. A luta é justamente para manter seus modos de vida e sistemas de produção, em meio à pressões para que as bonitezas das paisagens se transformem em processos produtivos em grande escala, que em geral não tem nenhuma empatia com o lugar.
Pescadores tradicionais de Reservas Extrativistas do sul da Bahia, por exemplo, vêm lutando muito para que os manguezais não sejam transformados em fazendas de camarão; no sul do Brasil, pescadores artesanais comemoram quando a tainha consegue chegar perto das praias, sem ter seus cardumes quase completamente dizimados pela pesca industrial; famílias agricultoras de assentamentos rurais, que lutam muito para que a reforma agrária prevista em lei aconteça, estão restaurando áreas degradadas com sistemas agroflorestais agroecológicos. E por aí vai. Em cada lugar, tem gente daquele lugar, gente que faz parte da paisagem, lutando para que o lugar não se transforme em uma monocultura de soja ou de eucalipto, em um buraco de mineração ou em resorts de luxo.
E, é claro, a nuvem de informações globalizada pode ajudar muito, pois por meio dela podemos saber destes lugares mais facilmente e podemos contribuir com suas lutas; podemos nos organizar em redes e podemos contribuir para a construção de políticas públicas em que as gentes de cada lugar possam ser de fato cidadãs. A nuvem, afinal, pode ajudar na empatia.
Mas empatia mesmo é coisa de gente.
💠 Agroflorestas de pé
Agrofloresta, agroecologia, secessão ecológica, terra preta de índio, África, Amazônia, gente, alegria, global e local... foram diversos assuntos nesse papo super alto-astral entre Walter Steenbock e Isabel Valle... e uma bela surpresa com a presença do Eurico Vianna.
Para assistir, basta clicar na imagem abaixo:
💠 Vem aí… Mais um livro de Walter Steenbock pela Bambual Editora
O "Agrofloresta: aprendendo a produzir com a natureza", escrito por Walter Steenbock e Fabiane Vezzani, com ilustrações de Claudio Leme, será reeditado pela Bambual Editora e estará disponível para download gratuito em 21 de Agosto de 2023. Por enquanto, você pode ler o A Arte de Guardar o Sol: Padrões da Natureza na reconexão entre florestas, cultivos e gentes.
💠 Viajar para criar novos laços de empatia
Turismo de Base Comunitária é um jeito de conhecer novos lugares, pensando em um turismo em que as atividades são protagonizadas pela própria comunidade local e que tem como pilar a sustentabilidade (sociocultural, econômica e ambiental). Quem vive essa experiência é integrado à cultura pelos comunitários, que recebem o visitante e apresentam o seu modo de vida. Deu vontade de viajar assim? A Braziliando é uma empresa que promove essas possibilidades de viagens. Conheça mais clicando na imagem:
Conhece outros lugares que promovem o Turismo de Base Comunitária? Conta pra gente nos comentários. 😉
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