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Eis o milagre da fé

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Travessia #16: Transformar

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Isabel Valle
dez 09, 2024
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Eis o milagre da fé
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Nos últimos três meses convivi com uma pessoa que não acredita em Deus.

Isto não me espantou, tampouco me afastou dela. Pelo contrário: passei a ficar mais atenta àquele universo humano. Foi como abrir um baú antigo e descobrir um monte de coisas inusitadas.

Quando lhe falei que eu criava minhocas, ela fez uma cara de tanto julgamento, do tipo “que porra é essa?”, que naquele momento eu também me questionei o que era aquilo que eu estava fazendo, com composteiras em um apartamento de sessenta metros quadrados. Eu não soube o que responder exatamente.

Daí, quando ela viu alguns espelhinhos convexos pela casa, se atreveu a perguntar, sem querer ofender:

- Pra que esses espelhos?

- Feng Shui...

- Hã?

Pensei: “Que idiota!”

Pensei de novo: “Ela ou eu?”

Ainda não tinha me dado conta, mas estava acontecendo um terremoto cultural – um terremoto entre mundos que convivem, mas não se tocam.

Logo eu, tão crente em uma espiritualidade raciocinada, cheia de certezas do mundo sutil. A frase “O essencial é invisível” está no meu mantra do whatsapp.

Se euzinha creio em Deus? Sim! Em Deus, na Deusa, Shiva, Durga, Jesus Puro e em todos os Orixás.

Fui entendendo que a cada interação inusitada ia caindo um dos véus de Maia para mim. A realidade – ou uma realidade que até então eu não enxergava – se descortinava, nua e crua. Quando questionei mais uma vez sobre a concepção de Deus para ela, a resposta foi:

- Isabel, pedra é pedra, porra!

É... pedra é pedra. Isto é uma verdade. Eu ainda tentei explanar sobre o campo eletromagnético das pedras, dos cristais, de tudo o que existe e... nada. Pedra é pedra e ponto.

Em algum momento, eu me propus a adentrar aquele mundo que se revelava. Antes que eu caísse de novo na armadilha da arrogância, rotulando a pessoa de “ignorante” (postura tão comum na minha bolha – e na sua?), fui empatizando, me permitindo, explorando aquele ser, e não tive, de novo, a pachorra de insistir em algo diferente e aceitei: pedra é pedra.

Nesta dança, eu estava sendo conduzida por minha curiosidade e pelos espantos de visões tão diferentes do mundo – do meu mundinho de cada dia – e isso me instigava mais e mais.

E como será que ela lida com a família, um grupo que se reúne pelo amor? Amor? Ou se reúne para conseguir sobreviver? Depois de passarem fome, morarem em um barraco, se separarem... o que os une novamente é o amor ou o ódio por um sistema extremamente desumano?

- E como é a morte para você?

- Acabou, acabou. Isabel, pedra é pedra.

Entendi... Estava começando a entender aquela realidade que exigia dureza da Alma para lidar com a dureza da vida. Mas isso já é, de novo, julgamento e, também, suposição minha. Será que para ela a vida pode ser guiada por afetos, delicadeza e prazer? Eu suponho que não. Ela diz que sim.

Os dias foram passando, interações rolando, até que ela resolveu me contar sobre uma mágoa profunda que tinha. Ela havia sido roubada. E foi de uma maneira que, além de lhe levarem algo material, que ela lutou muito para conseguir, isto foi feito porque ela confiou plenamente. Sua confiança naquela relação também foi roubada. E foi de uma maneira que não tinha mais como reaver o objeto, tampouco a confiança. Ela falou, falou, falou... xingou, xingou, xingou. Mas não chorou. Não lhe é permitido chorar. Entre suas reflexões e questionamentos, tecia a possibilidade de se vingar, processar, mandar matar. Nossa, nunca pensei em mandar matar alguém. Mas ela pensava seriamente. Depois que pareceu esgotar todo o ódio e as palavras calaram, concluiu:

- Não farei nada. Deixa quieto. A vida se encarrega disso.

A vida se encarrega disso. Eis o milagre da fé.

***

Em tempos limítrofes de transição nos quais vivemos, em que os extremos de tudo parece ser a ordem mundial, a vida é uma só – e é nela que estamos todos imersos. Também creio que “a vida se encarrega”. Para mim, ela se encarrega de tudo, sem exceção.

Acho que fui salva por essa pessoa. Ou ainda esteja sendo. Salva e lembrada do perigo da história única. Salva e alertada do risco da petrificação da Alma. Salva e sacudida sobre a ‘antidialética’ que o medo nos leva, pois o medo precisa ter certezas diante da percepção da realidade caórdica. Fui salva e transformada por crer na potência do diferente. Alguns chamam isso de “confiança no Plano”. Eis o milagre da fé.

***

Essa pessoa se foi. Por livre e espontâneo querer. Nem sei direito o motivo. Apesar de tantas diferenças entre nós, estava tão bom, pelo menos para mim. Não temos mais gargalhadas infinitas juntas ou contradições compartilhadas. Tudo isso virou estrelinha no meu coração. Uma estrelinha que brilha forte, pisca-pisca, me lembrando dos bilhões de mundos externos e internos que existem e das muitas rosas que podem ser cativadas por aí. Eis o milagre da fé.

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Oficina de escrita para encontrar nossas resoluções mais genuínas para 2025

O projeto

Escritas Regenerativas
vai oferecer a última oficina online do ano.

“Dezembro chegou e com ele uma vontade imensa de desacelerar junto ao papel (ou ao bloco de notas do celular ou a página em branco de um Word). Uma vontade de desacelerar em companhia.

Nos dias 17 e 19 de dezembro estaremos reunidas em uma sala online, para criar um espaço de presença interna, longe da correria e pressões que o final do ano costuma provocar em tanta gente.

Estaremos na oficina 'ESCRITA-RITUAL PARA NOVOS CICLOS’."

escritas_regenerativas
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“Usaremos a escrita, a leitura, a imaginação e rituais como ferramentas para encontrar as resoluções mais genuínas de cada um, além de criar um campo coletivo de inspiração para construção de novas realidades que queremos ver nascer.

Além de Virginia Woolf, também estaremos acompanhadas de escritos que celebram a chegada de um novo ano, deixadas por Carlos Drummond de Andrade, Ferreira Gullar, Fernando Pessoa e escritoras/escritores contemporâneos como Martha Medeiros, Rupi Kaur, Giovana Mdalasso, Joanna Macy, entre outros.”

📆 QUANDO? 17 e 19 de dezembro de 2024 (terça e quinta-feira)

⏰ QUE HORAS? 19h às 21h

🖥️ ONDE: Em uma sala online no Zoom

❇️ INSCRIÇÕES AQUI.


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Isabel Valle
Fundadora e publisher da Bambual Editora - Doutoranda do EICOS/UFRJ
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