Curiosamente ou não, para respirar precisamos, antes de mais nada, esvaziar os pulmões para deixar o ar entrar. Expirar. O “vazio” ou o “nada” tem um certo tom de incômodo, assim como o silêncio e a pausa, em uma cultura movida pelo rápido crescimento econômico, o mundo dos vencedores, do dinheiro e da comunicação em massa (de uma sociedade industrializada em todos os seus sentidos).
Darwin criou a máxima “só os mais fortes sobrevivem”. Descartes já dizia “penso, logo existo”. Adam Smith inaugurou a ideia de economia como um bolo que se deve fazer crescer ao máximo para poder “repartir” com muitos depois. E o protestantismo triunfa o “trabalho” como a dignidade do homem.
Enfim, eu podia continuar extensivamente a lista dos pensamentos que marcam até hoje a base do que significa a maior parte (quase que hegemônica) da “nossa” civilização. Depois da modernidade, o pensamento racional sobrepôs (e reprimiu) a qualquer outro tipo de inteligência (intuição, instinto, sentimento, sensação, cosmologia e outros). A imagem da natureza como a seleção natural das espécies onde só os mais fortes prevalecem foi traduzida para a competitividade de que só os vencedores sobrevivem na “selva de concreto” do mercado de trabalho, do esporte, e das cidades. A ideia de que devemos crescer o máximo que pudermos refletiu na falácia de que um infinito ciclo de extração-produção-consumo-descarte poderia continuar existindo sem efeitos colaterais. O controle dos dogmas sociais serviu de fundo perfeito para dizer que aqueles que trabalham muito e ganham muito dinheiro são mais bem vistos pela sociedade.
Essa “corrida pelo ouro”, cada um por si, e o mais rápido vence, ditou o ritmo de gerações alimentando uma fome cada vez maior por estar mais à frente e mais rápido. A conquista por mais (e mais rápido) ressoou na ocupação de territórios que, segundo seus conquistadores (claro), não havia “nada” e estariam dotados de povos “sem progresso” e “sem desenvolvimento”, culminando na maior atrocidade da humanidade - o colonialismo e a escravidão. O drástico rompimento de vidas, culturas e ecossistemas pela ganância, violência, pilhagem e arrogância mudaram o curso do planeta para sempre.
Desse momento doloroso, massacrado, emergiu pouco a pouco uma contra-corrente silenciosa, se ocupando nos (im)possíveis vazios da opressão, como o samba, o coco, a umbanda e a capoeira.
Surgiram como hiatos da celeridade do trabalho forçado, criativas formas de abrir espaços (sejam minimamente por saúde mental, corporal ou espiritual, ou por instinto à sobrevivência e reação).
Algumas centenas de anos depois, chegamos a um mundo extremamente conectado pela comercialização de uma indústria da telecomunicação e automação em crescente expansão, numa intensidade da informação cada vez maior, associado a bizarras taxas desigualdades sociais e degradação ambiental. Esse ritmo insano ocupa todos os espaços, todos instantes e chegamos a um ponto (ou até passamos) em que é necessário decrescer. Mas, entendemos decrescimento aqui não ao pé da letra, mas como uma resposta a essa ideia de crescer e vencer acima de tudo. Descrescimento surge como uma alternativa em busca de uma vida que faça mais sentido numa escala mais humana e menos máquina.
A capoeira, a vadiação e a malandragem
Como dizia mestre Nestor, a capoeira está para o Brasil, assim como a ioga está para a Índia e a psicanálise para a Europa, e pode ser (não necessariamente é) um antídoto para essa aceleração da vida.
Como prática naturalmente decolonial, a capoeira como princípio tem em si uma capacidade extremamente habilidosa de ser maleável, flexível e ser metamorfose dentro de uma complexidade de possibilidades sociais. Na capoeira não tem certo, nem errado; nem juiz, nem regras definidas; nem vencedor, nem perdedor; nem bom, nem mau. É a antítese daquela receita de mundo.
Como cultura, existem seus códigos e suas definições, mas capazes de mudar de uma forma bastante orgânica de mestre para mestre. Como natureza, é livre. E contrário àquela cultura dos primeiros parágrafos ela incorpora a intuição, o axé, e muitos outros saberes que não apenas o racional. Capoeira não é luta, não é dança, não é jogo, não é música, não é acrobacia, não é arte e é tudo isso ao mesmo tempo. Ela nega sem romper, soma a quem precisar, se multiplica em muitas partes e uma diversidade de ideologias (e não ideologias). Antes de tudo, a capoeira é altamente transformativa (individualmente ou coletivamente), pela sua filosofia, pelos seus movimentos quebradores das couraças da vida, por sua música, sua arte e suas relações, capaz de mudar as pessoas. Ela é feminina, e é vadiação.
No mundo acelerado da sobrevivência do mercado de trabalho, a vadiação é arte da brincadeira séria, de rir por se divertir, numa luta onde se pode dançar, numa dança objetiva, numa objetividade poética, de cair no chão sem “perder” e se supreender. A capoeira é circular, é democrática na roda (na sua micropolítica é outra história), é pura criatividade e consciência ao mesmo tempo. Ela é leve e divertida, mas pode matar. Pode ser devagar, rápida, alta, baixa, é para todas as pessoas.
A capoeira do século XXI tem toda capacidade de abrir espaços, gerar mudança nas pessoas e desacelerar como uma espécie de “terapia civilizacional”. Isso não significa, assim como o decrescimento, ter que diminuir ou entrar em recessão ou ficar pequeno. Desacelerar nesse caso significa uma alternativa a esse mundo tão acelerado numa “roda de rato” rumo ao abismo. Não quer dizer que a capoeira tenha uma velocidade lenta como o Tai-Chi ou a Hatha Yoga; a capoeira (como a natureza, o ser humano, o planeta e Aruanda) tem de tudo. Mas o que quero dizer aqui é sobre como ela tem a capacidade de quebrar o ritmo industrializado do mundo e gerar novas formas de se relacionar com seu corpo, mente e as outras pessoas, e sobretudo APRENDER através da arte mais holística de todas. Claro que há muitas contradições e controvérsias dentre esse potencial, mas isso é assunto para outra coluna.
Por fim, capoeira é malandragem. Não a dos que se acham mais espertos que os outros e querem “se dar bem” em cima do outro. A malandragem é de que tá bom pro “malandro” se tiver bom pra todo mundo. Se não tiver bom pra todos, “vai dar ruim” em algum momento. Para isso o bom malandro tem uma alta capacidade de leitura do campo social e “faz tudo ficar bem”, pra ficar bom para ele também. A capoeira não nasce na universidade, no dojo ou no ashram, a capoeira nasce na rua, na ilegalidade, nas margens da sociedade. A roda é o vazio no meio, em que absolutamente todos têm o direito de preencher alternadamente, embora sempre todos participem (tocando, cantando ou jogando).
Na capoeira, em paralelo com as novas economias, é necessário saber desacelerar seu ritmo interno, respirar e respeitar o outro num acordo mútuo silencioso de análise do risco até o limite para se surpreenderem sem se machucar. Século XXI é decrescer, desacelerar, inovar e respeitar.
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