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Decifra-te, ou serás devorada
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Decifra-te, ou serás devorada

travessia #18: decolonizar

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Bruna Buch
mar 31, 2025
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Decifra-te, ou serás devorada
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Quando alguma coisa dá errado, geralmente fazemos uma retrospectiva para tentar encontrar o ponto de origem do problema, a escolha primária que fez todo o resto desandar, para que o aprendizado aconteça e a gente não caia no mesmo buraco.

É muito parecido com o que acontece quando adoecemos e tentamos entender os sintomas e as possíveis causas, para definir o melhor prognóstico com um profissional da saúde. Quando você olha para a nossa situação atual: a poluição da atmosfera, da terra e dos oceanos, a extinção de espécies e a opressão das pessoas racializadas, surge em você essa mesma urgência em compreender em que momento perdemos o rumo?

Em seu livro Design de Culturas Regenerativas, Daniel Christian Wahl escreve que:

“Enquanto precisamos urgentemente aplicar o design e a inovação inspirados pela biologia, devemos primeiro examinar até que ponto a ‘história da separação’ (escassez e competição) também influenciou a nossa perspectiva sobre a vida, a biologia e a ecologia”.

Daniel nos lembra que a perspectiva reducionista e dualista que permeou a visão e as práticas da ciência na modernidade já foram superadas pelo pensamento sistêmico, pela compreensão da simbiose e outros processos de colaboração entre os seres. Mas parece que enquanto não entendemos o quanto essa visão de separação está atrelada aos nossos maiores problemas, a transição segue lenta em um panorama de destruição acelerado.

Para o pensador decolonial Aníbal Quijano, a modernidade está ligada ao colonialismo. A ideia central de progresso que a caracteriza foi construída com base na exploração de povos e territórios, impondo a visão eurocêntrica como universal, e marginalizando outros saberes e formas de vida. Além da ideia de progresso, a valorização do pensamento racional como a principal forma de entender a realidade também foi fundamental neste período histórico. Francis Bacon, fundador da Revolução Científica e um dos filósofos mais influentes de sua época, afirmou que o objetivo do cientista era “extrair da natureza, sob tortura, todos os seus segredos”, como conta Fritjof Capra em seu livro O Ponto de Mutação.

Num processo de total desencantamento da vida, que começa aproximadamente no início do século XVI, a natureza passa a ser vista como uma máquina que deve ser capturada e quebrada em peças menores.

Do mesmo modo, as pessoas não-brancas passam a ser vistas como objetos a serem tomados à força e explorados até o limite de sua dignidade. É de muita potência a realização que Antonio Bispo dos Santos alcança ao comparar no livro A terra dá, a terra quer , o processo de adestramento de animais com o processo de colonização:

“Tanto o adestrador quanto o colonizador começam por desterritorializar o ente atacado quebrando-lhe a identidade, tirando-o de sua cosmologia, distanciando-o de seus sagrados, impondo-lhe novos modos de vida e colocando-lhe outro nome”.

É exatamente assim que estamos interagindo com o nosso mundo há séculos, confundindo demonstrações de poder com o progresso da humanidade.

O que podemos em um mundo desencantado?

Joanna Macy, no livro Esperança Ativa, faz uma contemplação sobre as formas de poder que dão base aos nossos modos de estar no mundo. Ela faz um contraponto entre duas visões: o poder-sobre e o poder-com, onde o primeiro só pode ser conquistado empurrando outras pessoas para baixo e está identificado com a separação e a dominação, enquanto o segundo baseia-se em sinergia e colaboração, onde os saberes partilhados podem interagir no processo de emergência ou, como diz Antonio Bispo, de confluência.

Quando você pensa nas relações de trabalho que você experimentou, que tipo de poder você identifica nesses espaços?

Neste mês de março, um dado alarmante ganhou a atenção dos veículos de comunicação e das redes sociais: segundo o Ministério da Previdência Social, em 2024, o número de afastamentos do trabalho em razão de episódios depressivos, transtornos de ansiedade, estresse grave e outras questões de saúde mental foi de 440 mil, mais que o dobro do registrado em 2014. Mesmo que a gente acredite em causas deterministas, como genes ligados à depressão e outras condições, é um fato científico que o meio influencia na expressão de uma característica, ou seja, está ficando cada vez mais óbvio que saúde mental não é uma questão isolada do tipo de ambiente no qual as pessoas estão inseridas. Ninguém acredita mais que tratar pessoas adoecidas sem resolver as relações de trabalho vá resolver alguma coisa.

Joanna Macy destaca que o poder-sobre se relaciona com a invulnerabilidade, com a necessidade de defender-se para não ser massacrada, e de criar uma armadura rígida e impenetrável.

É um tipo de poder que se desenvolve em um jogo de soma zero: enquanto eu ganho, alguém perde.

O resultado desse movimento é que é preciso saber mais, ganhar mais, isolar-se em uma bolha construída para vencer a si mesma. É esquecer que a vida é fruição e que só existimos em coletividade. Como diz Aílton Krenak em A Vida não é útil:

“O pensamento vazio dos brancos não consegue conviver com a ideia de viver à toa no mundo, acham que o trabalho é a razão da existência”.

E se a sua realização não dependesse apenas do que está documentado no seu currículo? Uribam Xavier, autor do livro Decolonizar É Preciso, explica que “não existe um único caminho para o processo de libertação das formas de opressão, dominação, subalternização e exploração, nem modelo único de sociedade a ser seguido. Pelo contrário, a ideia de pensamento pluriversal implica existência de vários caminhos e possibilidades”. A decolonialidade pode ser uma prática: um processo de redescobertas e de autoafirmação.

Como diz Audre Lorde, escritora caribenha-americana:

“Se eu não tivesse me definido para mim mesma, teria sido esmagada pelas fantasias que outras pessoas fazem de mim e teria sido comida viva”.

Contemplar a questão da decolonialidade é subverter a famosa frase da Esfinge de Tebas: “Decifra-te, ou serás devorada”.

E se você quiser começar, deixo aqui uma sugestão de exercício que está no livro Esperança Ativa, na página 90:

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Bruna Buch
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