A consciência profunda de que somos Natureza é tão antiga quanto nossa origem humana, assim como ocorre com todas as outras espécies. Com o passar dos séculos, fomos nós, enquanto “humanidade”, assumindo de forma camuflada nossa soberba e perda de identidade, nos achando superiores à toda criação.
Nosso pertencimento à Natureza, porém, tem sido sempre resgatado por filósofos e espiritualistas. A partir do final do século XIX, a ciência também foi deixando cada vez mais claro nossa relação umbilical com Gaia.
Entre tantos outros cientistas - até há algum tempo chamados de naturalistas - Darwin, Kropotkin, Lovelock, Margulis, Morin, Capra, Maturana e Varela abriram caminhos para codificar, na tal linguagem que a “humanidade” concebeu como certa, nossa relação orgânica com a Natureza. Mesmo assim, nossa soberba insiste em nos cegar, e estamos aí no Antropoceno, aniquilando nossa existência coletiva.
Na toada de buscar explicar como os seres humanos fazem parte da Natureza, Marx -apesar do marxismo ortodoxo não ter percebido - recorreu ao conceito de metabolismo, que a bioquímica começava a entender, na segunda metade do século XIX. Em meio à Revolução Industrial, percebeu que a forçada separação territorial das pessoas à Natureza, ao serem levadas dos campos para o trabalho nas fábricas, gerava uma “fratura metabólica”. A relação com a Natureza, para a subsistência e vida, antes era imediata, em um processo metabólico entre os ciclos humanos e os ciclos naturais. Essa relação passou a ser mediada pelo empregador: nas fábricas, não se trabalhava mais com a terra, com a água, com a floresta, com os ciclos... mas em serviços alienados da Natureza, que rendiam o parco salário para uma subsistência vulnerável.
Se Dorival Caymmi tivesse vivido nestes tempos e Marx tivesse aceitado o convite em vir à Bahia, teria ele percebido que por aqui a fratura metabólica já vinha desde 1500, promovida pelo cacetete da colonização. O desmatamento, a cana e o café transformaram as paisagens em espaços de tentativa de controle da Natureza para poucos, e expulsaram quem vivia de seus ciclos de seus territórios. Até hoje, estes nem chegam a fazer parte da tal “humanidade”, invisíveis que seguem sendo pela continuidade das políticas coloniais.
Aos poucos, nossa própria percepção da importância da interação dos nossos ciclos com os ciclos da natureza foi sendo sequestrada. Mantemos hoje uma vaga lembrança dessa percepção, quando algo pagão dentro de nós ainda sente no Natal o cultivo da esperança, ou na Páscoa a força da transformação... mas em geral estas são percepções distantes, enevoadas pela ânsia do consumo que domina estes períodos.
Porém, ao longo dos séculos, cada cultura desenvolveu rituais para vivenciar a energia dos equinócios e solstícios, fases lunares e estações do ano, aprendendo cada um e cada uma com estes momentos de passagem da Natureza a nos transformarmos, junto. Cada cultura também desenvolveu ritos de passagem entre o menino, o adulto e o ancião, e entre a menina, a mulher e a anciã, fazendo com que em cada momento da vida a energia estivesse focada em seus ciclos apropriados.
Ao não nos permitir vivenciar nossos próprios ciclos de passagem para diferentes fases da vida, seguimos com a “distração infantil” durante toda a vida, sendo levados pela fluidez da sociedade líquida, desvendada por Zygmunt Bauman. E, dessa forma, seguimos pulando ondas e comendo semente de romã no “ano novo”, na esperança de que o próximo ano vai ser melhor, mesmo que continuemos com a mesma soberba e não enxerguemos muito em volta.
Mas, assim como toda a Natureza, resiliência e resistência promovem propriedades emergentes. Ailton Krenak segue nos contando como os morros têm vida, Leosmar Terena segue nos contando como os pássaros indicam a hora do plantio, e tantos irmãos que ainda resistem no metabolismo humano com a Natureza nos indicam caminhos possíveis para o bem viver, se a soberba não for nosso guia. Exilados da pretensa “humanidade”, indígenas, quilombolas, pescadores artesanais, agricultores agroecológicos e tantos outros grupos sociais, ao insistir em viver, nos acendem luzes para enxergar a Natureza a nossa volta.
Diferentemente dos filósofos, espiritualistas e cientistas, estes grupos insistem em viver, mais do que em descrever realidades. E como a bioquímica já nos ensinou desde o século XIX, e a ecologia no século XX, cada componente de qualquer reação - ou relação - tem um papel fundamental no meio em que está, pela sua originalidade e pertencimento, tornando o ambiente cada vez mais acolhedor para novas formas de vida e fazendo emergir novas possibilidades. É justamente isso que nos ensina quem vive mais próximo dos ciclos da Natureza.
E é assim que uma grande luz dos Quilombos deixou nosso plano, nos últimos dias, mas segue criando propriedades emergentes. Dizia ele:
“Não precisa inventar um novo mundo, não. Precisa reeditar o velho mundo. Precisa reeditar os Quilombos. Os Quilombos são as áreas mais preservadas, são as áreas mais festivas, são os territórios que se vive festejando as aldeias do mesmo jeito, então por que reinventar?
Por que esses pesquisadores, ao invés de ser pesquisadores, não são estudantes, não são aprendiz? Por que essas pessoas, ao sair da universidade para ir nos territórios, para nos pesquisar, por que não nos contrata para dar aula para vocês? Pra ensinar pra vocês relações ambientais, e não educação ambiental? Pra ensinar pra vocês relações de compartilhamento, e não de coletividade?
Ensinar pra vocês relação de envolvimento, e não de desenvolvimento? Acabou... o mundo das teorias desconectadas. Acabou.”
Obrigado Antônio Bispo dos Santos! Viva esse mundo que se acaba! E um Feliz Natal!
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