A escrita começa com o desejo de guardar histórias, registros sobre colheitas e trocas comerciais, ensinamentos espirituais e visões inspiradoras sobre o nosso mundo. Para que esse desejo surgisse no coração da humanidade muitas conversas em comunidades, ao redor do fogo, precisaram acontecer. A linguagem humana, a qual especula-se que tenha surgido há uns 300 mil anos, é a catalisadora da evolução cultural dessa nossa espécie, que é capaz de provocar as maiores alterações já vistas no globo terrestre.
Antes mesmo de as primeiras palavras e frases serem criadas, muitos sons precisaram ser percebidos, reconhecidos e catalogados na nossa mente ancestral. Em seu livro A Origem do Homem e a Seleção Sexual, Charles Darwin disse:
“Não posso duvidar que a linguagem deva sua origem à imitação e modificação, com apoio de sinais e gestos, de vários sons naturais, vozes de outros animais, e gritos instintivos do próprio homem”.
No início, a escuta era a leitura do mundo e para saber para onde se deslocar, como encontrar comida e quando se proteger das chuvas ou do frio, era preciso escutar os rios, os ventos, as aves e tantos outros animais.
Pensando a nossa história através do tempo profundo, a habilidade de ouvir é muito mais antiga do que a nossa própria existência. Ela começa com o surgimento dos primeiros peixes, há uns 440 milhões de anos atrás, dos quais herdamos estruturas biológicas capazes de receber as vibrações que o nosso cérebro reconhece como sons. Dentro do nosso ouvido médio, pequenos ossos chamados de estribo, bigorna e martelo evoluíram a partir dos arcos branquiais, estruturas que sustentam as brânquias dos peixes.
Ao longo do tempo evolutivo, os arcos branquiais dos primeiros peixes, que ainda não tinham mandíbula, se transformaram no maxilar dos primeiros animais a saírem do oceano e explorar a terra firme, os tetrápodes. Depois, nos répteis, parte dos ossos do maxilar se romperam para formar o estribo e mais tarde, nos mamíferos, a bigorna e o martelo. Quando observamos o desenvolvimento de um embrião humano vemos um pouco de como esse processo se deu: por volta de quatro a cinco semanas de gestação, surgem os arcos branquiais que irão se transformar nos ossículos do ouvido médio. Antes de sermos humanos, somos peixes relembrando quase 500 milhões de anos de evolução dos vertebrados no ventre materno. A Terra conta parte de sua história através da nossa capacidade de escutar.
Mas, com tanta informação sonora disponível em vídeos e podcasts, será que estamos conseguindo ouvir os sons da Terra?
Quando foi a última vez que você prestou atenção à sinfonia de seres em um ambiente natural? No mês de junho pude fazer um passeio noturno na Floresta Estadual Edmundo Navarro de Andrade, na cidade de Rio Claro (SP). Começamos a caminhar pela trilha e quando alcançamos um ponto mais para o centro da floresta, paramos quietos e ficamos ouvindo o cricrilar de muitos insetos e o piado de algumas aves, como corujas e curiangos. Foi um alívio, pelo menos neste curto espaço de tempo, não ouvir nenhum som criado por humanos, além de aproveitar a escuridão da noite para aguçar a escuta.
Essa breve experiência me deixou pensando na quantidade de sons que deixamos de ouvir no meio de tanto barulho que fazemos cotidianamente e nos sons mais sutis que não somos capazes de perceber por causa da própria faixa de frequência que o ouvido humano consegue captar (entre 20 hertz e 20 quilohertz). Imagine poder ouvir as árvores? Hoje sabemos que as plantas emitem alguns cliques e estalos na frequência de 40 a 80 quilohertz que só conseguimos acessar por meio de gravadores sensíveis. Quando estão sob estresse hídrico, ou quando sofrem algum corte no caule, as plantas aumentam o número de cliques e estalos de um por hora para até 50 por hora.
E se pudéssemos ouvir o que acontece numa grande área de um ecossistema, desde os sons dos animais até os sons das atividades humanas? Isso é o que propõe a área de estudo da Ecologia Acústica. Do mesmo modo que pesquisadores usam armadilhas fotográficas para monitorar áreas naturais, é possível utilizar gravadores para capturar os sons e processá-los através de algoritmos treinados para classificá-los em três categorias: ruídos antrópicos (provocados por nós), os ruídos dos animais e os sons dos elementos naturais (água e vento, por exemplo). Organizações como a Rainforest Connection já utilizam esse método para monitoramento e envio de alertas em tempo real sobre a presença de motosserras, caminhões e carros em áreas protegidas.
Nesta era em que a degradação da natureza acontece de forma acelerada e ruidosa, o desenvolvimento dessa escuta onipresente indica que a leitura do mundo continua sendo importante para a humanidade, mesmo levando vidas tão diferentes dos nossos ancestrais. Rachel Carson diz, no livro Primavera Silenciosa:
"Parece razoável acreditar que quanto mais claramente possamos concentrar nossa atenção nas maravilhas do universo que nos cerca, menos gosto teremos pela destruição".
Portanto, sintonizar-se com os seres mais que humanos e praticar a escuta ativa como leitura do nosso mundo atual, com suas maravilhas e perturbações ruidosas, é uma oportunidade para que a gente se dê conta de que pode interferir menos e se encantar mais.